“Agente da PSP mata homem que o tentou assaltar”. “Agente da PSP mata homem que o sequestrou”. “PSP mata assaltante durante rapto”. A notícia é desta segunda-feira, e continua, naturalmente (ainda agora a investigação começou) em atualização à hora a que escrevo este texto.

É um caso bizarro (tão bizarro que ocorrendo a 1 de abril a pessoa hesita em acreditar): de acordo com a versão que terá sido, lê-se nas primeiras notícias publicadas, transmitida por “fonte do Comando Metropolitano de Lisboa” à Lusa, o agente da PSP em causa estaria “à civil” (desfardado, portanto, até porque não se encontrava em serviço), pelas 3H30 da madrugada de segunda-feira, parado nuns semáforos de Algés ao volante do seu automóvel quando “um homem armado” o teria obrigado, sob ameaça de arma de fogo, a passar para um outro carro, “conduzido por outro suspeito”.

O outro suspeito seria uma mulher. De seguida os dois assaltantes teriam levado o agente a um multibanco (para levantar dinheiro, supõe-se) e daí para a casa do polícia, em Benfica. Ainda de acordo com o mesmo relato, foi aí, na sua habitação, que "terá conseguido chegar à sua arma de serviço, tendo usado a mesma, neutralizando o suspeito, que acabou por perder a vida no local”.

A mulher, que aguardaria no exterior, foi detida pela PSP. De todas as que li, a notícia que apresenta mais pormenores, chegando inclusivamente a identificar o tipo de automóvel dos assaltantes (“um BMW de cor cinzenta”), e a certificar que o agente tem 50 anos, pertence ao corpo de segurança pessoal daquela polícia e vive com a mulher e fiha, as quais “se encontravam fora de Lisboa nas celebrações pascais, na terra-natal”, é a do Jornal de Notícias, e tem como título “PSP que matou assaltante atraiu raptores a prédio onde só vivem polícias”.

Segundo essa notícia, o agente ter-se-á, antes de disparar, “identificado como polícia” e em seguida “pedido ajuda a um vizinho polícia”. “As autoridades chegaram rapidamente e a mulher [que estaria no tal BMW] foi detida”, lê-se no JN.

Fica-se na dúvida sobre se quem deteve a mulher foi o vizinho (ou vizinhos, já que segundo o jornal o prédio está cheio de polícias); um comunicado da PSP, que terá surgido após as primeiras notícias, informa que “o segundo suspeito foi intercetado e detido por polícias da Divisão de Investigação Criminal da PSP, que entretanto acorreram ao local”. De onde “acorreram” não fica claro - dir-se-á que se um agente dispara sobre alguém na sua casa e pede ajuda aos vizinhos que são também agentes, estes não esperarão que chegue uma patrulha para irem deter uma pessoa que está num carro à porta do prédio.

Quanto tempo levou toda a situação desde a abordagem em Algés também não é dito, mas a Polícia Judiciária comunicou a jornalistas que o respetivo “serviço de prevenção de homicídios recebeu cerca das 05h00 uma chamada da PSP a dar conta de que um agente da autoridade atingiu mortalmente um presumí­vel suspeito de roubo na sua residência”.

Anote-se que a versão transmitida pela PJ à Lusa difere um pouco da constante no comunicado da PSP: segundo a PJ o assaltante armado terá obrigado o agente “a conduzir até uma zona descampada onde se juntou a mulher detida e os dois obrigaram-no a conduzir a viatura até sua casa”. No relato da PJ não há ida ao multibanco (o que não quer, obviamente, dizer que não tenha existido; como já escrevi, a investigação ainda agora começou).

E porque, pergunta quem me lê, me dedico a tal resumo num texto de opinião? Para anotar algo de muito positivo: ao contrário daquilo a que a PSP nos habituou durante décadas nos comunicados sobre casos que envolvem mortes causadas por agentes, todo o texto exarado pela corporação está escrito no condicional - “terá sido”, “terá obrigado”, “terá conseguido” -, como deve acontecer quando se relata algo sem saber realmente o que aconteceu. E tem uma frase fundamental: “Segundo informação do mesmo” - referindo o agente envolvido.

Admito que para a maioria das pessoas passasse despercebida, mas para quem como eu passou décadas a ler comunicados policiais sobre este tipo de situações, a dita frase, que atribui ao agente que disparou a autoria, e portanto a responsabilidade, da versão que a PSP transmite, é uma janela de esperança.

Esperança em relação à forma como a instituição se relaciona com o público e os jornalistas e como se posiciona em matéria deontológica e de direitos fundamentais. Num caso de morte de uma pessoa por utilização da arma de fogo distribuída a um agente, em vez de, como sempre acontecia, se assumir como sendo da PSP o relato do polícia, torna-se claro que se trata de isso mesmo, da versão do polícia e não da Polícia.

Desta forma, a PSP cumpre o dever de informar, transmitindo aquilo que é a narração do agente envolvido, sem se comprometer com ela nem assumir qualquer posição sobre o que é dito - até porque não poderia, com seriedade e honestidade, fazê-lo, por falta de tempo para averiguações e porque, para além do mais, a investigação está a cargo da PJ.

Esta atitude, que espero não se atenha apenas ao caso em apreço e corresponda a uma alteração definitiva na forma como a PSP comunica e portanto a uma rejeição do corporativismo que a tem caracterizado (como à GNR) em situações deste tipo, deve ser assinalada e louvada.

Num momento em que ascende à cúpula da Administração Interna uma ex-dirigente da IGAI - a Inspeção Geral da Administração Interna, geralmente denominada de “a polícia das polícias”, sendo o órgão criado nos anos 1990 para fiscalizar, nomeadamente no que respeita ao uso de violência, as corporações policiais sob tutela daquele ministério -, a juíza conselheira jubilada Margarida Blasco, e quando na PSP há um novo diretor, José Barros Correia, aquela frase no comunicado desta segunda-feira parece um bom auspício.

Pode ser que nos cinquenta anos de Abril a PSP tenha decidido finalmente comportar-se como a polícia adulta de um Estado democrático. Pode ser. Mas para que isso possa acontecer se calhar era de não se fazer no jornalismo o que a própria PSP, por uma vez, não fez no seu comunicado: dar como certo aquilo que ainda agora começou a ser investigado. Era bom que também nas notícias se aprendesse a dizer “segundo informação do agente”.

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Um tiro à queima-roupa no corporativismo policial?

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02.04.2024

“Agente da PSP mata homem que o tentou assaltar”. “Agente da PSP mata homem que o sequestrou”. “PSP mata assaltante durante rapto”. A notícia é desta segunda-feira, e continua, naturalmente (ainda agora a investigação começou) em atualização à hora a que escrevo este texto.

É um caso bizarro (tão bizarro que ocorrendo a 1 de abril a pessoa hesita em acreditar): de acordo com a versão que terá sido, lê-se nas primeiras notícias publicadas, transmitida por “fonte do Comando Metropolitano de Lisboa” à Lusa, o agente da PSP em causa estaria “à civil” (desfardado, portanto, até porque não se encontrava em serviço), pelas 3H30 da madrugada de segunda-feira, parado nuns semáforos de Algés ao volante do seu automóvel quando “um homem armado” o teria obrigado, sob ameaça de arma de fogo, a passar para um outro carro, “conduzido por outro suspeito”.

O outro suspeito seria uma mulher. De seguida os dois assaltantes teriam levado o agente a um multibanco (para levantar dinheiro, supõe-se) e daí para a casa do polícia, em Benfica. Ainda de acordo com o mesmo relato, foi aí, na sua habitação, que "terá conseguido chegar à sua arma de serviço, tendo usado a mesma, neutralizando o suspeito, que acabou por perder a vida no local”.

A mulher, que aguardaria no exterior, foi detida pela PSP. De todas as que li, a notícia que apresenta mais pormenores, chegando inclusivamente a identificar o tipo de automóvel dos assaltantes (“um BMW de cor cinzenta”), e a certificar que o agente tem 50 anos, pertence ao corpo de segurança pessoal daquela polícia e vive com a........

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