“Sofreu muito ao ser acusado desta forma”; “São constantes as agressões ao autor”; “São constantes as ofensas ao seu bom nome e imagem”; “O autor foi vexado, ficando moralmente afetado na sua honra e no seu bom nome”; “Sendo frequentemente apelidado de ‘racista’, ‘extrema-direita nazi’, ‘fascista’, ‘xenófobo’”; “A dor, o vexame, o desgosto levaram a uma angústia sem paralelo que provocaram grande dor e sofrimento ao autor”; “Ficou ansioso, desmoralizado, muito mais nervoso, e impaciente, o que contribuiu em muito para um distanciamento com a família e amigos”; “Após a publicação da notícia cada deslocação deixava-o sempre muito ansioso, e com medo de sofrer agressões”; “Este impacto sentiu-se não só na sua vida pessoal como também na vida política, a ansiedade, o nervosismo causado por esta notícia abalaram a sua capacidade de trabalhar, criaram alguns receios nas decisões a tomar (…), sentiu medo das represálias, por si pelo impacto que esta notícia teve na comunidade, e nos seus candidatos”; “O comportamento dos réus afetou o resultado político tanto do autor e do partido que este representa”.

As frases citadas fazem parte da matéria dada como não provada na sentença, conhecida na passada semana, que absolveu o Diário de Notícias e esta jornalista num processo cível movido por André Ventura.

Nesse processo, o deputado e líder do Chega (que pode ainda recorrer da decisão para o Tribunal da Relação) exigia 50 mil euros para compensar os “danos morais”, por “violação do seu direito à honra e ao bom nome”. Tal violação, sustentava, fora perpetrada na manchete de 7 de dezembro de 2021 do DN - “Supremo confirma ‘racismo’ de Chega! e André Ventura” - a qual referia a condenação de Ventura e Chega por, precisamente, “ofensas ao direito à honra e imagem ofensas ao direito à honra e imagem (…) com vertente discriminatória em função da cor da pele e da situação sócio-económica” de uma família de residentes (todos negros) do bairro da Jamaica.

Esta espécie de recurso paródico à justiça - condenados por violação do direito ao bom nome que se consideram feridos no bom nome por uma notícia sobre a respetiva condenação - seria sempre assinalável num partido e num seu líder. Mas é-o ainda mais porque está longe de ser única: quer Ventura quer o Chega estão a recorrer repetidamente aos tribunais contra quem refere esta condenação - caso de Catarina Martins, a ex-coordenadora do Bloco de Esquerda, que o presidente do Chega acusa do crime de “difamação agravada” por ter afirmado, no debate com Ventura pré-legislativas de 2022, que ele fora condenado por racismo - e contra quem denuncia outras atuações discriminatórias e incendiárias de ambos.

É evidente que o sistema judicial serve precisamente para dirimir conflitos entre cidadãos, e um político ou um partido têm, como qualquer outra pessoa ou organização, direito ao bom nome. Mas é também óbvio que quando esse político e partido se notabilizam por um sistemático ataque ao bom nome de outras pessoas e organizações - para enumerar todas as vezes que usaram a calúnia e insulto não chegariam todas as páginas deste jornal; basta porém lembrar como, no debate com Rui Tavares, André Ventura o acusou de querer “toda a gente à solta, violadores, homicidas, terroristas, tudo”, e a propósito das eleições dos Açores chamou ao PSD “prostituta política” -, pretenderem apresentar-se como vítimas do exato tipo de ataque que é a sua principal estratégia não revela só a sua essencial má fé; é uma deliberação de condicionamento das críticas e um manifesto do seu anseio autocrático. O anseio de quem pretende dizer tudo e um par de botas sobre todos e não admite qualquer crítica - nem sequer, imagine-se, referências a decisões judiciais desfavoráveis.

Mas, apesar de não me lembrar de ver um partido e/ou um seu líder, na democracia portuguesa, a processar tanta gente, entre opositores políticos, jornalistas e comentadores, não dei conta de que esta atuação esteja a ser - ao contrário do que se passou com outros políticos que recorreram aos tribunais por alegadas ofensas ao bom nome - alvo de debate ou análise. Como em quase tudo o que Ventura e Chega fazem, parece aplicar-se-lhes um critério diferente, único, feito à medida; viu-se isso nos recentes debates televisivos, quando a maioria dos comentadores mais uma vez (já é costume) valorizou como “eficaz” o facto de o líder da extrema-direita passar o tempo todo a interromper os outros e a proferir falsidades e acusações delirantes e insultuosas.

Essa valorização da conduta boçal e falsificadora da realidade de Ventura, que a decalcou de Trump e corresponde, na sua pose de bully de taberna, a uma espécie de “boneco” de “macho-alfa” (recorde-se por exemplo como o ex-presidente americano se portou num debate, em 2016, com a opositora Hillary Clinton, colocando-se, de forma ameaçadora, atrás dela), contrasta com a imagem lamentosa e frágil, choramingas até, que o líder do Chega traça de si nos processos judiciais, e que está plasmada nas citações que iniciam este texto.

Perante os tribunais, o homem que foi para um debate das presidenciais (com Marcelo Rebelo de Sousa) chamar “bandidos” e “bandidagem” a um grupo de pessoas negras a quem nem sequer identificou - como se bastasse a respetiva cor de pele para que o crisma se justificasse -; que quis “devolver à sua terra” a deputada negra Joacine Katar Moreira como se lhe coubesse decidir quem tem lugar em Portugal; que, como candidato à Câmara de Loures pelo PSD, em 2017, deliberou promover-se estigmatizando a comunidade cigana; e cujo partido colocou cordas de enforcamento no portão do Tribunal Constitucional quando este se debruçava sobre a sua legalidade, apresenta-se como um coitado sensível e ansioso, que não aguenta que o confrontem com as suas afirmações discriminatórias e insultuosas e morre de medo de sair à rua.

Um homem que, como deu como provado o tribunal na sentença que comecei por citar, “entendeu que a Justiça o tinha condenado por utilização de ‘linguagem racista’” mas tem o desplante de querer processar um jornal por noticiar isso mesmo - porque, afirma, isso o faz sofrer muito.

O homem que decerto está neste momento mais desmoralizado, mais nervoso, mais impaciente, vexado e inconsolável que nunca. É que o presidente do PSD, Luís Montenegro, lhe disse, cara a cara no debate entre os dois, que jamais fará acordos com o Chega porque este tem “opiniões populistas, xenófobas e racistas”. Quantos processos irão Ventura - depois de se recompor do desgosto, claro - e o Chega apresentar na justiça contra o PSD e respetivo líder? E quantos votos e lugares no parlamento calcula que as acusações de Montenegro farão o partido perder? Nem dá para imaginar.

QOSHE - Ventura, o caluniador coitadinho - Fernanda Câncio
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Ventura, o caluniador coitadinho

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21.02.2024

“Sofreu muito ao ser acusado desta forma”; “São constantes as agressões ao autor”; “São constantes as ofensas ao seu bom nome e imagem”; “O autor foi vexado, ficando moralmente afetado na sua honra e no seu bom nome”; “Sendo frequentemente apelidado de ‘racista’, ‘extrema-direita nazi’, ‘fascista’, ‘xenófobo’”; “A dor, o vexame, o desgosto levaram a uma angústia sem paralelo que provocaram grande dor e sofrimento ao autor”; “Ficou ansioso, desmoralizado, muito mais nervoso, e impaciente, o que contribuiu em muito para um distanciamento com a família e amigos”; “Após a publicação da notícia cada deslocação deixava-o sempre muito ansioso, e com medo de sofrer agressões”; “Este impacto sentiu-se não só na sua vida pessoal como também na vida política, a ansiedade, o nervosismo causado por esta notícia abalaram a sua capacidade de trabalhar, criaram alguns receios nas decisões a tomar (…), sentiu medo das represálias, por si pelo impacto que esta notícia teve na comunidade, e nos seus candidatos”; “O comportamento dos réus afetou o resultado político tanto do autor e do partido que este representa”.

As frases citadas fazem parte da matéria dada como não provada na sentença, conhecida na passada semana, que absolveu o Diário de Notícias e esta jornalista num processo cível movido por André Ventura.

Nesse processo, o deputado e líder do Chega (que pode ainda recorrer da decisão para o Tribunal da Relação) exigia 50 mil euros para compensar os “danos morais”, por “violação do seu direito à honra e ao bom nome”. Tal violação, sustentava, fora perpetrada na manchete de 7 de dezembro de 2021 do DN - “Supremo confirma ‘racismo’ de Chega! e André........

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