Há um mês, o Financial Times publicou um artigo sobre como nos últimos tempos a visão política dos jovens, em termos globais, se tem dividido de forma muito vincada em termos de género. “A Geração Z é duas gerações, não uma”, lê-se no artigo, assinado por John Burn-Murdoch, e que cita a investigadora Alice Evans, da Universidade de Stanford.

“Em países de todos os continentes, verifica-se uma divisão [gap] de género entre os jovens e as jovens”, diz Burn-Murdoch, que exemplifica com os EUA: “Depois de décadas em que ambos os sexos se dividiam igualmente entre as visões do mundo liberal e conservadora, as mulheres dos 18 aos 30 estão agora 30 pontos percentuais mais liberais que os seus contemporâneos masculinos. Esta divisão levou apenas seis anos a cavar-se.”

Podíamos aventar que se trataria de um efeito da era Trump e do que ela trouxe em termos de recuo nos direitos das mulheres - desde logo, a reversão pelo Supremo Tribunal da decisão de 1973 que declarara o aborto um direito constitucional. Mas o mesmo, com a mesmíssima diferença, se passa na Alemanha, e o Reino Unido anda perto: 25 pontos percentuais. Já na Polónia, país onde nem sequer é reconhecido o direito à interrupção da gravidez e só na semana passada se assistiu a uma votação parlamentar favorável à liberalização da venda da pílula do dia seguinte (de venda livre nas farmácias da generalidade dos países europeus há décadas), cerca de 50% dos homens dos 18 aos 22 apoiavam, em 2023, o partido de extrema-direita, contra apenas um sexto das mulheres da mesma idade.

Para não se pensar que se trata de uma tendência apenas ocidental, o jornalista do FT adianta que esta se observa - mais acentuada ainda - na Coreia do Sul, China e Tunísia. E, aparentemente, em Portugal: um estudo dos politólogos Pedro Magalhães e João Cancela sobre as legislativas de 2022 aponta para que, caso só mulheres tivessem votado, a esquerda teria conseguido mais lugares e o PS ainda mais vantagem na sua maioria absoluta, com o Chega a só eleger seis deputados (metade dos que sentou na Assembleia da República). O contrário ocorreria se votassem apenas homens: o Chega somaria 15 lugares e o PS não alcançaria a maioria.

Esta divisão terá, segundo um artigo de 31 de janeiro no Público que cita o trabalho de Pedro Magalhães, continuado a verificar-se ao longo de 2023, com o Chega a notabilizar-se como o partido que mais afastamento provoca entre mulheres e homens.

Não sendo segredo que os partidos de esquerda/liberais (ou menos de direita/conservadores) tendem a ser muito mais favoráveis a políticas que promovem a igualdade de género e o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a verdade é que a reportada divisão ideológica/política entre mulheres e homens parece, como fenómeno global, ser muito mais recente que a tradicional distinção entre esquerda e direita no tratamento dos direitos das primeiras.

No seu artigo no FT, Burn-Murdoch aventa que o movimento #metoo terá sido o “gatilho” determinante para este fosso, ao promover valores feministas entre as jovens e encorajando-as a falar contra as injustiças de que se sentem alvo: “A clara divisão entre progressistas e conservadores no que respeita ao assédio sexual parece ter causado - ou é pelo menos parte de - um realinhamento mais vasto de jovens mulheres e homens para, respetivamente, os campos liberais e conservadores em outros assuntos.”

É o caso, pelo menos nos EUA, Reino Unido e Alemanha quanto às opiniões sobre imigração e questões raciais, diz o jornalista, que chama a atenção também para o facto de este tipo de divisão poder ser exacerbado pelos “universos” separados que a internet e as redes sociais permitem criar para mulheres e homens.

Havendo uma clara alteração na forma como as mulheres e sobretudo as raparigas portuguesas veem o feminismo e a luta pelos seus direitos (são decerto hoje muitíssimo mais vocais e conscientes nessa matéria do que há dez anos, quando se começou a debater o assédio sexual nas redes sociais); sendo óbvio que a “onda” de extrema-direita que assola a Europa é inimiga dos direitos das mulheres; e que existe a dita tendência para a divisão de sentido de voto em função do género, esperar-se-ia que o tema fosse “puxado” pelos jornalistas nos debates televisivos que opuseram os líderes partidários.

E não se diga que não há assunto. Recorde-se que o partido de extrema-direita, além de se portar na Assembleia da República de forma insistentemente misógina, prometeu acabar com a dotação orçamental de 400 milhões de euros para o que apelida de “ideologia de género” - dotação que, como foi de imediato explicado, se refere a medidas de promoção de igualdade entre mulheres e homens, de combate à violência contra mulheres, de apoio à parentalidade, etc - e inscreveu no seu programa o objetivo de acabar com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (que seria “absorvida” por uma “secretaria de Estado da Família”).

Por outro lado, se ficou claro ao longo do ano de 2023, desde logo através da investigação publicada por este jornal, que há problemas graves no acesso à interrupção de gravidez no Serviço Nacional de Saúde, lembre-se que os dois principais partidos - PSD e CDS-PP - que compõem a Aliança Democrática não só se opuseram historicamente à possibilidade de as mulheres poderem interromper a gravidez como utilizaram a sua última maioria absoluta para, no derradeiro dia da legislatura 2011/2015 e com Luís Montenegro como líder parlamentar, alterar a lei no sentido de penalizar as mulheres que pretendam aceder-lhe. Para tal, aboliram o registo de profissionais objetores de consciência no Serviço Nacional de Saúde e a proibição de que estes pudessem participar nas consultas de IG, e obrigaram as mulheres a “apoio psicológico” durante o “período de reflexão”. Alterações prontamente anuladas pela maioria de esquerda que resultou das eleições de 4 de outubro de 2015 e que, lembre-se também, o então presidente da República, Cavaco Silva, recusou promulgar.

Quando nos EUA e Europa - na qual vários países alteraram ou se preparam para alterar as leis sobre interrupção de gravidez no sentido de tornar mais fácil o acesso (Reino Unido, Espanha, França, Bélgica, Alemanha)de consagrar o seu direito nas constituições (França) - o tema dos direitos das mulheres anima o debate político, em Portugal é como se não houvesse nada a discutir ou resolver, nenhuma divisão nesta matéria.

Como se não houvesse, e cada vez mais pelo que se constata, votos feministas e votos machistas. Como se lutar pelas mulheres não implicasse votar como uma mulher.

QOSHE - Votar como uma mulher - Fernanda Câncio
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Votar como uma mulher

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27.02.2024

Há um mês, o Financial Times publicou um artigo sobre como nos últimos tempos a visão política dos jovens, em termos globais, se tem dividido de forma muito vincada em termos de género. “A Geração Z é duas gerações, não uma”, lê-se no artigo, assinado por John Burn-Murdoch, e que cita a investigadora Alice Evans, da Universidade de Stanford.

“Em países de todos os continentes, verifica-se uma divisão [gap] de género entre os jovens e as jovens”, diz Burn-Murdoch, que exemplifica com os EUA: “Depois de décadas em que ambos os sexos se dividiam igualmente entre as visões do mundo liberal e conservadora, as mulheres dos 18 aos 30 estão agora 30 pontos percentuais mais liberais que os seus contemporâneos masculinos. Esta divisão levou apenas seis anos a cavar-se.”

Podíamos aventar que se trataria de um efeito da era Trump e do que ela trouxe em termos de recuo nos direitos das mulheres - desde logo, a reversão pelo Supremo Tribunal da decisão de 1973 que declarara o aborto um direito constitucional. Mas o mesmo, com a mesmíssima diferença, se passa na Alemanha, e o Reino Unido anda perto: 25 pontos percentuais. Já na Polónia, país onde nem sequer é reconhecido o direito à interrupção da gravidez e só na semana passada se assistiu a uma votação parlamentar favorável à liberalização da venda da pílula do dia seguinte (de venda livre nas farmácias da generalidade dos países europeus há décadas), cerca de 50% dos homens dos 18 aos 22 apoiavam, em 2023, o partido de extrema-direita, contra apenas um sexto das mulheres da mesma idade.

Para não se pensar que se trata de uma tendência apenas ocidental, o jornalista do FT........

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