Trump insinua “banho de sangue” se perder a eleição e depois culpa “os media e os democratas” por uma suposta interpretação errada do que, manifestamente, disse com todas as letras. Putin, impante após os 87% da reeleição mais folgada de sempre na Rússia, felicita “o regresso à casa russa” dos territórios ocupados na Ucrânia.
A última semana mostrou-nos como a democracia corre um sério risco de se perder no nevoeiro dos autocratas e da forma como conseguem inverter a realidade pelas palavras.
Basta olharmos para quem felicitou Putin pelos resultados de domingo passado: Bielorrússia, Coreia do Norte, Venezuela, China. O presidente Xi destacou a “certeza e continuidade” do regime russo, em contraste com a volatilidade, fraqueza e instabilidade das lideranças ocidentais. Mais nevoeiro.
Trump gostava de ter feito, em 2020, o que Putin voltou a fazer descaradamente: usar, no poder, um processo eleitoral como instrumento de legitimação da sua via autocrática. No caso de Donald, a democracia resistiu - mas foi por pouco. Voltará a enfrentar novo teste de “stress”, a 5 de novembro. Teme-se o pior e será muito difícil dissipar ainda mais nevoeiro.
“Joe Biden é uma enorme ameaça à nossa democracia. Se não ganharmos as eleições, esta pode mesmo ser a última”, insiste Trump. “A NATO está a preparar um ataque à Rússia”, avisa Putin. Nevoeiro e mais nevoeiro. De tanto inverterem o que verdadeiramente está em causa, de tanto acusarem os opositores daquilo que eles próprios praticam, Donald e Vladimir conseguem mesmo obter um vasto apoio junto de segmentos que suspiram por autoridade e suposta “ordem” (apenas ilusória).
Trump jura que os atacantes do Capitólio de 6 de janeiro de 2021 eram “reféns” e não invasores. Putin garante que as suas ações de agressão na Ucrânia são consequência de ameaças à Rússia.
É um erro pensar que a supremacia da democracia liberal é inelutável. O nevoeiro da desinformação é cada vez maior e os construtores da nova ordem autoritária capaz de desmontar décadas de ordem internacional liberal exploram-na com um misto de vigor e perversão.
Já agora: sabem onde vai Putin na sua primeira viagem ao estrangeiro pós reeleição? À China, claro.
Bem-vindos à distopia da democracia perdida no nevoeiro. Isto ainda é só o início.
Numa daquelas coincidências de calendário em que a História é fértil, a insinuação de Trump no Ohio sobre o “banho de sangue” se não ganhar aconteceu exatamente 16 anos depois do discurso A More Perfect Union (Uma União Mais Perfeita), provavelmente o melhor da vida política de Barack Obama.
Em plena luta com Hillary Clinton para a nomeação democrata de 2008, e quando o despique parecia em risco de resvalar para a questão racial, Obama proferiu uma reflexão séria e profunda sobre as contradições da América nesse tema crucial.
Hoje, possivelmente uma abordagem destas não teria ganhos eleitorais. Há década e meia, mereceu o caminho para a nomeação improvável. Terminava assim: “Afirmei uma firme convicção - uma convicção enraizada na minha fé em Deus e na minha fé no povo americano - de que, trabalhando juntos, podemos ultrapassar algumas das nossas antigas feridas raciais e que, na verdade, não temos escolha se quisermos continuar no caminho de uma união mais perfeita.”
Como foi possível perder-se tanto pelo caminho, entre 2008 e 2024?
A democracia perdida no nevoeiro
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21.03.2024
Trump insinua “banho de sangue” se perder a eleição e depois culpa “os media e os democratas” por uma suposta interpretação errada do que, manifestamente, disse com todas as letras. Putin, impante após os 87% da reeleição mais folgada de sempre na Rússia, felicita “o regresso à casa russa” dos territórios ocupados na Ucrânia.
A última semana mostrou-nos como a democracia corre um sério risco de se perder no nevoeiro dos autocratas e da forma como conseguem inverter a realidade pelas palavras.
Basta olharmos para quem felicitou Putin pelos resultados de domingo passado: Bielorrússia, Coreia do Norte, Venezuela, China. O presidente Xi destacou a “certeza e continuidade” do regime russo, em contraste com a volatilidade, fraqueza e instabilidade das lideranças ocidentais. Mais nevoeiro.
Trump gostava de ter feito, em 2020, o........
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