A seis semanas das eleições mais importantes da história da União Europeia, era muito importante que a discussão eleitoral nos Estados-membros se focasse mesmo nos temas que interessam ao processo europeu - e não utilizassem o ato eleitoral para dirimir duelos de política doméstica.

Desde 2019, ano das anteriores eleições europeias, a UE deu fortes avanços na transição verde e na transição digital, consumou um divórcio demorado e doloroso com o Reino Unido, enfrentou (com dureza, dificuldades, mas franco sucesso) uma pandemia e está agora, algures ainda entre o choque e o receio, a enfrentar duas guerras: uma em solo europeu, num país que pretende aderir em breve à UE (Ucrânia), outra em Gaza, dirimida pelo único estado democrático do Médio Oriente, Israel, e um grupo terrorista que usa a causa palestiniana para se legitimar - o Hamas.

Os próximos anos prometem ser ainda mais desafiantes e arriscados. A UE terá de decidir se quer mesmo passar a ser uma estrutura virada para a Defesa (e como); a adesão da Ucrânia - opção geopolítica e geoestratégica necessária para travar a ameaça russa, mas com exigências geoeconómicas que exigem ponderação - lança também questões sobre o alargamento da UE.

É o grande desafio do projeto europeu nos próximos quatro anos: será possível conciliar a necessidade de impulsionar a aposta na Defesa com as alterações que isso deverá implicar na composição dos fundos e na distribuição dos Orçamentos Nacionais?

A invasão russa da Ucrânia gerou essa mudança de paradigma.

A necessidade de passar a ver a Defesa como uma prioridade comum aos Estados-membros não foi logo evidente. Começou por ser mais clara nos países do flanco Leste e pelos nórdicos. A rapidez com que as sociedades finlandesa e sueca mudaram a sua posição quanto à forma de gerir a relação com a Rússia, passando em dias, após 24 de fevereiro de 2022, de um quarto para mais de três quartos, os que, na Finlândia e na Suécia, defendiam a adesão à NATO.

Nos últimos meses, a perceção passou a ser generalizada no espaço comunitário: a Europa precisa de construir uma estratégia de Defesa Comum, que implica articular decisões, aumentar os investimentos e comprar europeu.

A aprovação no Congresso dos EUA do pacote de segurança de Joe Biden, que inclui o financiamento de 60 mil milhões de dólares à Ucrânia, recolocou a América no papel liderante do apoio a Kiev. Mas a incógnita política sobre o que acontecerá nos próximos meses no outro lado do Atlântico é grande.

Essa indefinição americana será o maior propulsor da prioridade de construção de uma nova Estratégia de Defesa Europeia. Não para romper os laços transatlânticos, mas para que, como bem tem avisado o presidente Macron, a Europa tenha soluções alternativas ao guarda-chuva militar americano.

Não é certo que esta nova equação permita uma coesão contínua do 27 Estados-membros no que toca ao respetivo posicionamento geopolítico e geoeconómico: mais ou menos proximidade com a China (que insiste em apoiar a Rússia com material de uso dual, como Blinken apontou diretamente a Xi Jinping e Wang Yi, em solo chinês)?; mais ou menos dependência com Washington, se Donald Trump voltar à Casa Branca?

Caso se confirme esta viragem europeia rumo a uma estratégia de Defesa, isso responde a uma tendência global de clara subida nos gastos nessa área.

De acordo com o relatório anual do Instituto de Pesquisa para a Paz Internacional de Estocolmo, os gastos militares globais em Defesa subiram 6,8% em 2023. Os países mais despesistas em Defesa foram os Estados Unidos, China e Rússia. Pela primeira vez na última década e meia, as despesas militares globais aumentaram em todos os continentes.

Este aumento sem precedentes das despesas militares é uma resposta direta à deterioração global da paz e da segurança. A agressão na Ucrânia fez com que a Rússia aumentasse os seus gastos em Defesa em 24%, para cerca de 101,9 mil milhões de dólares, registando um aumento de 57% desde 2014, o ano da anexação da Crimeia.

A Ucrânia foi o oitavo maior gastador em 2023, após aumento de gastos de 51%, atingindo 60 mil milhões de euros, um valor que representa 58% da despesa total de Kiev. A Ucrânia também recebeu, pelo menos, 32 mil milhões de euros em ajuda militar durante o ano, incluindo cerca de 21 mil milhões de euros dos EUA.

Combinadas, esta ajuda e os gastos militares da própria Ucrânia foram equivalentes a cerca de 91% dos gastos totais russos.

O relatório também revela que os Estados Unidos continuam a ser o país da NATO que mais gasta em Defesa, mas reconhece-se que os países europeus membros da Aliança Atlântica aumentaram a sua comparticipação. Em 2023, os 31 membros da NATO nesse ano (ainda sem a Suécia, que se juntou recentemente) tiveram 55% das despesas militares mundiais.

Os gastos militares dos EUA aumentaram 2,3%, atingindo 916 mil milhões de dólares em 2023, 68% do total da NATO.

Uma década depois de os membros da NATO se terem comprometido formalmente com a meta de gastar 2% do PIB nas Forças Armadas, 11 dos então 31 membros da NATO atingiram ou ultrapassaram este nível em 2023 - o número mais elevado desde que o compromisso foi assumido.

A China destinou 278 mil milhões de euros às Forças Armadas em 2023, um aumento de 6% em relação a 2022, naquele que foi o 29.º aumento consecutivo do regime de Pequim. A Índia foi o quarto maior gastador militar a nível mundial em 2023, com 78 mil milhões de euros, 4% superior a 2022.

QOSHE - A Europa outra vez em xeque - Germano Almeida
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A Europa outra vez em xeque

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30.04.2024

A seis semanas das eleições mais importantes da história da União Europeia, era muito importante que a discussão eleitoral nos Estados-membros se focasse mesmo nos temas que interessam ao processo europeu - e não utilizassem o ato eleitoral para dirimir duelos de política doméstica.

Desde 2019, ano das anteriores eleições europeias, a UE deu fortes avanços na transição verde e na transição digital, consumou um divórcio demorado e doloroso com o Reino Unido, enfrentou (com dureza, dificuldades, mas franco sucesso) uma pandemia e está agora, algures ainda entre o choque e o receio, a enfrentar duas guerras: uma em solo europeu, num país que pretende aderir em breve à UE (Ucrânia), outra em Gaza, dirimida pelo único estado democrático do Médio Oriente, Israel, e um grupo terrorista que usa a causa palestiniana para se legitimar - o Hamas.

Os próximos anos prometem ser ainda mais desafiantes e arriscados. A UE terá de decidir se quer mesmo passar a ser uma estrutura virada para a Defesa (e como); a adesão da Ucrânia - opção geopolítica e geoestratégica necessária para travar a ameaça russa, mas com exigências geoeconómicas que exigem ponderação - lança também questões sobre o alargamento da UE.

É o grande desafio do projeto europeu nos próximos quatro anos: será possível conciliar a necessidade de impulsionar a aposta na Defesa com as........

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