O ataque do Irão a Israel na noite de 13 para 14 de abril mudou quase tudo no Médio Oriente. Não foi só uma “escalada”: foi o romper de uma linha vermelha que se julgava não ser ultrapassada tão cedo. Afinal, Teerão pode mesmo atacar diretamente Telavive, sem ter de utilizar as suas marionetas mais próximas do território israelita: o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iémen, o Hamas em Gaza e na Cisjordânia, milícias xiitas no Iraque.

Chega a ser difícil de compreender a tese, que foi ganhando tração nos últimos dias, de que teria sido um “ataque limitado, quase simbólico” do Irão a Israel: mais de 300 drones e mísseis (balísticos e de cruzeiro) configuraram, na verdade, o maior ataque de vetores aéreos em muitos anos. Nunca a Rússia o conseguiu fazer nesta escala sobre a Ucrânia, desde 24 de fevereiro de 2022, por exemplo.

O que fez parecer “só um aviso” aquilo que foi, na verdade, um ataque em grande escala foi, obviamente, a grande capacidade de neutralização israelita e dos seus aliados (EUA, Reino Unido, França e até Jordânia e Arábia Saudita), para lá de uma assinalável falta de eficácia e desempenho de boa parte dos mísseis iranianos.

Depois de 13 de abril, Israel ficou menos isolado, o Irão tornou-se mais ameaçador aos olhos de quase todos. As monarquias árabes sunitas vizinhas ou próximas de Israel puderam reposicionar-se numa via mais alinhada com Telavive e Washington, perante o verdadeiro inimigo comum, que é o Irão.

A Jordânia já fez saber que não se deixará “transformar numa arena de conflito” entre Irão e Israel. A situação da Jordânia mostra que se houvesse uma guerra regional entre o Irão e Israel, ela nunca seria terrestre. Existe uma distância de 2000 quilómetros, com quatro países pelo meio. A Arábia Saudita voltou a ter uma janela de oportunidade (temporariamente perdida após 7 de outubro e o início da guerra Israel/Hamas em Gaza) de normalizar relações com Telavive, sob patrocínio americano.

O Irão teve uma grande derrota estratégica: recolheu ganhos pífios perante tamanho empenhamento e perdeu, de vez, o efeito da “primeira ação”.

Ao contrário, Israel ganhou novo fôlego diplomático e até militar: mereceu a defesa dos jordanos e até dos sauditas, reaproximou-se do amigo americano (que se afastava gravemente perante a chacina israelita em Gaza) e pode agora aproveitar o embalo da coligação internacional contra o risco de um Irão nuclear. O 13 de abril mostrou que não é possível acomodar em qualquer cenário diplomático um Irão nuclear – os perigos seriam sempre superiores em relação a qualquer vantagem imaginável.

As sanções que UE, EUA e Reino Unido agravaram sobre o Irão nos últimos dias assim o confirmam.

A retaliação de Israel era inevitável. A dúvida residia no momento, na dose e nos propósitos.

O momento revelou alguma surpresa: indicações de quinta-feira – após reuniões de responsáveis militares, diplomáticas e de segurança de Israel e EUA – apontavam para que o executivo de Netanyahu se preparava para avançar com uma operação só em maio, depois da Páscoa judaica (a “pessach”, a passagem, que assinala a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito há 3500 anos). O efeito surpresa foi usado – e Israel já o tinha aproveitado noutros momentos.

A dose era particularmente relevante. Ora, nesse ponto surge, pelo menos para já, o primeiro sinal positivo: Netanyahu parece estar disposto, nesta fase, a seguir a via da Administração Biden de uma “desescalada” para evitar uma guerra regional de dimensões inesperadas e imprevisíveis.

Por fim, os propósitos. Isfahan tem, no seu território, localizadas unidades importantes para o programa nuclear do Irão, incluindo a instalação subterrânea de enriquecimento de urânio de Natanz. Esta é uma unidade que tem sido repetidamente alvo de ataques de sabotagem, que são atribuídos aos israelitas. Nesta aérea visada situa-se também a 8.ª base de caças da Força Aérea do Irão.

Depois de dois momentos de escalada (1 de abril, por parte de Israel em Damasco; 13 de abril, por parte do Irão, sobre Israel), a retaliação israelita (apenas a primeira ou a única?) revelou uma redução animadora. Apenas três drones sobre o complexo militar iraniano de Isfahan, certamente obra de Israel, ainda que o regime iraniano aponte uma suposta execução de forças terceiras (possivelmente a mando de Telavive). Não sabemos se Israel se ficará por aqui – dúvida que não deixa de ser uma vantagem estratégica para Telavive – mas sabemos que o Irão já fez saber que não pretende retaliar, refugiando-se numa hábil narrativa de que não atribui a Israel o que aconteceu na madrugada de quinta para sexta-feira.

A Rússia já está neste conflito, incitando o Irão a lançar o caos no Médio Oriente. Há um interesse claro de Moscovo em afastar as atenções da agressão gravíssima que a Rússia está a fazer na Ucrânia e que tem para nós, europeus, uma consequência que muita gente ainda não percebeu: o desmoronamento da arquitetura europeia enquanto a conhecíamos até 24 de fevereiro de 2022.

A situação no Médio Oriente tem uma perspetiva mais global, devido à ameaça nuclear iraniana e ao medo de um conflito alargado. Estamos a falar de uma zona onde está uma boa parte dos combustíveis fósseis, podendo desencadear uma guerra regional, originando uma situação mundial descontrolada, no plano dos mercados da energia, por exemplo.

Para já, durante o dia de sexta o barril de Brent até caiu 0,61%, para 86,58 dólares, após o Exército iraniano dar a entender que não responderia ao ataque de Israel.

Por tudo isto, a Rússia tem claramente interesse em desestabilizar a região. Os Estados Unidos nunca vão deixar Israel sozinho. E o Irão sabe que num cenário de guerra direta iria perder, uma vez que os Estados Unidos e Israel teriam muito mais força.

Os dados parecem lançados. Estarão mesmo?

O equilíbrio pelo terror valeu na Guerra Fria, entre Estados Unidos e a União Soviética, pela dissuasão mútua nuclear. Mas estamos longe de saber se valerá num novo equilíbrio de terror entre o Irão e Israel.

Por enquanto, a única conclusão que podemos tirar é que a noite de 13 para 14 de abril mostrou-nos que o Irão não pode ter uma arma nuclear.

Enquanto isso, Benjamin Netanyahu, que já tinha perdido a face em Gaza, ganha uma nova vida (mais uma). Está a tentar sobreviver politicamente, prolongando as guerras e apelando à união interna perante uma aparente “ameaça existencial multifacetada” sobre Israel (Hamas, Hezbollah, Irão).

O que muda na situação em Gaza, em especial na preparação da operação terrestre em Rafah?

Não é certo, mas tudo indica que pelo menos haverá um adiamento. A Casa Branca desmente que Biden tenha dado um “free pass” Netanyahu nos planos para Rafah, a troco de uma retaliação mitigada contra o Irão – mas a ligação entre estas duas decisões parece existir.

Até porque o general Lloyd Austin, chefe do Pentágono, reconheceu ao telefone com Gallant, ministro da Defesa israelita, que eliminar a capacidade do Hamas voltar a ameaçar Israel implicará a concretização da operação em Rafah, “desde que com um plano de proteção dos civis”.


Especialista em Política Internacional

QOSHE - Desescalar até decidir Rafah - Germano Almeida
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Desescalar até decidir Rafah

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22.04.2024

O ataque do Irão a Israel na noite de 13 para 14 de abril mudou quase tudo no Médio Oriente. Não foi só uma “escalada”: foi o romper de uma linha vermelha que se julgava não ser ultrapassada tão cedo. Afinal, Teerão pode mesmo atacar diretamente Telavive, sem ter de utilizar as suas marionetas mais próximas do território israelita: o Hezbollah no Líbano, os houthis no Iémen, o Hamas em Gaza e na Cisjordânia, milícias xiitas no Iraque.

Chega a ser difícil de compreender a tese, que foi ganhando tração nos últimos dias, de que teria sido um “ataque limitado, quase simbólico” do Irão a Israel: mais de 300 drones e mísseis (balísticos e de cruzeiro) configuraram, na verdade, o maior ataque de vetores aéreos em muitos anos. Nunca a Rússia o conseguiu fazer nesta escala sobre a Ucrânia, desde 24 de fevereiro de 2022, por exemplo.

O que fez parecer “só um aviso” aquilo que foi, na verdade, um ataque em grande escala foi, obviamente, a grande capacidade de neutralização israelita e dos seus aliados (EUA, Reino Unido, França e até Jordânia e Arábia Saudita), para lá de uma assinalável falta de eficácia e desempenho de boa parte dos mísseis iranianos.

Depois de 13 de abril, Israel ficou menos isolado, o Irão tornou-se mais ameaçador aos olhos de quase todos. As monarquias árabes sunitas vizinhas ou próximas de Israel puderam reposicionar-se numa via mais alinhada com Telavive e Washington, perante o verdadeiro inimigo comum, que é o Irão.

A Jordânia já fez saber que não se deixará “transformar numa arena de conflito” entre Irão e Israel. A situação da Jordânia mostra que se houvesse uma guerra regional entre o Irão e Israel, ela nunca seria terrestre. Existe uma distância de 2000 quilómetros, com quatro países pelo meio. A Arábia Saudita voltou a ter uma janela de........

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