A Rússia é a agressora que é preciso travar com urgência, mas a China é o desafio sistémico de maior profundidade.

O Departamento de Defesa do Estados Unidos divulgou recentemente o relatório anual sobre os avanços da China em relação ao poderio militar. Em mais de 200 páginas, é revelado como Xi Jinping está cada vez mais empenhado em fazer da China a grande potência militar da Ásia e do Pacífico.

Pequim investiu vários milhões de dólares no último ano em desenvolvimento de tecnologia para operações terrestres, aéreas e marítimas, bem como nucleares, espaciais e de guerra eletrónica. Um dos grandes destaques na área militar observado pelo governo americano está na marinha chinesa, que aperfeiçoou a sua a frota marítima, já a maior do mundo. Atualmente, as Forças Armadas de Pequim possuem dois porta-aviões e desenvolvem o terceiro navio de assalto anfíbio, bem como destruidores de mísseis guiados, cruzadores e fragatas adicionais. Em breve, aponta o relatório do Pentágono, o regime de Xi será capaz de realizar ataques de precisão de longo alcance contra alvos terrestres, não só através dos seus submarinos, mas também por via de tropas terrestres.

O Exército Popular de Libertação modernizou os seus equipamentos e concentra armas combinadas e treino conjunto no esforço de cumprir a meta de se tornar a grande potência militar que sustentará uma nova ordem internacional, contestatária da ordem liberal e que coloque definitivamente em causa o “domínio unipolar dos EUA”.

As Forças Armadas chinesas demonstraram uma nova capacidade de fogo de longo alcance logo após a visita da Delegação do Congresso americano, então liderado por Nancy Pelosi, em agosto de 2022 a Taiwan.

A China já possui a maior marinha do mundo, com uma força de batalha total de mais de 370 navios e submarinos, incluindo mais de 140 combatentes de superfície. O arsenal do Exército de Libertação Popular é composto em grande parte por modernos navios multimissão e submarinos, lançando em 2022 seu terceiro porta-aviões, o CV-18 Fujian. Mais dois navios de Assalto Anfíbio estão já a ser desenvolvidos por Pequim. A curto prazo, a China terá a capacidade de conduzir ataques de precisão a longo alcance por via terrestre, em superfície usando mísseis de cruzeiro, e marítima. Outra categoria militar que surpreendeu o Departamento de Defesa americano foi pelo ar. A força aérea chinesa produziu no último ano aeronaves tripuladas e não tripuladas mais avançadas, constituindo a maior força de aviação no Indo-Pacífico. O grande destaque da área foi o caça de quinta geração, chamado Ju-20.

O relatório do governo americano verificou ainda que, no último ano, o regime de Xi construiu 100 novas armas nucleares, tornando o país a potência nuclear com crescimento mais rápido no planeta. Pequim está no caminho para igualar numericamente o arsenal nuclear dos Estados Unidos até 2032.

A 28 de agosto 2023, a China apresentou uma nova versão seu mapa nacional que criou profundo mal-estar e muitos receios em vários dos seus vizinhos.

O momento escolhido pelo presidente Xi para a divulgação do mapa foi cirúrgico: ocorreu dias antes das reuniões da Associação de Nações do Sudeste Asiático, em Jacarta, e do G20, em Nova Deli (ambas nos primeiros dias de setembro de 2023).

Nesse mapa revisionista, a China inclui no seu território áreas contestadas do Mar do Sul da China e estados indianos. Na altura, Pequim alegou que essas revisões são apenas um “exercício rotineiro de soberania legal”. Algo que países como Filipinas, Malásia e a Índia -- três dos países mais visados -- discordam profundamente.

“Não tem base no direito internacional”, acusou o Ministério dos Negócios Estrangeiros das Filipinas, numa alusão às linhas traçadas a favor da China que tinham sido reconhecidos em 2016 como fazendo parte do governo de Manila.

Quanto à Índia, contesta “fortemente” a inclusão no mapa chinês do estado indiano de Arunachal Pradesh (mais de 3000 quilómetros), localizado no noroeste da Índia, que a China considera seu, por alegadamente fazer parte da região autónoma do Tibete. Há também a questão do planalto de Aksai-Chin, na Caxemira, disputada por Índia e Paquistão e com uma pequena parte administrada pela China.

Estas divergências territoriais já provocaram uma guerra de dois meses entre os dois países, em 1962. Desde então, estão separados pela chamada Linha de Controlo Real, com forte presença militar de ambos os lados, o que tem gerado confrontos não tão raros assim. “Fazer reivindicações absurdas sobre território da Índia não o torna território da China”, protestou o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, Jaishankar Subhramanyam.

A contestação indiana ganha redobrado relevo se nos lembrarmos que, dias antes da publicação do mapa chinês, Xi Jinping e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, se tinham reunido à margem dos BRICS, na África do Sul, precisamente com o intuito de reduzir tensões decorrentes deste tema. Aparentemente, os esforços não foram bem-sucedidos.

O novo mapa oficial da China contempla 80% do mar do Sul da China, o que abrange ilhas e águas disputadas por outros países da região, casos de Malásia, Filipinas, Vietname, Indonésia e Brunei. E além de afetar zonas administradas pela Índia, também abrange território russo.

Mas… e Vladimir Putin, não reage a isso? Para mais, quando se trata de território, logo aquilo que o presidente russo reivindica na sua agressão não provocada na Ucrânia?

A nordeste da China, devemos olhar para a disputa pela ilha de Bolshoy Ussuriysky, velho conflito com a Rússia, que durava desde meados do século XIX e parecia sanado desde que os dois países assinaram um tratado, em 2008. O território da ilha foi dividido ao meio, mas agora, no novo mapa nacional, faz parte, na totalidade, da China. Moscovo ainda não reagiu a esta afronta e isso terá quase tudo a ver com a necessidade da Rússia contar com o apoio chinês na guerra da Ucrânia.

“As relações entre a Rússia e a China têm o caráter de uma parceria abrangente e de cooperação estratégica. Moscovo e Pequim cooperam de forma frutífera em todas as áreas e coordenam eficazmente os seus esforços nos assuntos internacionais", declarou Putin, quando do 74.º aniversário de Xi.

Há um ano, em março de 2023, Putin e Xi assinaram uma nova parceria estratégica entre Moscovo e Pequim e pediram uma solução diplomática para a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Ambos acusam os Estados Unidos e os países ocidentais de lutarem “até ao último ucraniano”.

Uma visão conjunta que foi reforçada no recente encontro em Moscovo entre o representante diplomático chinês para a Eurásia, Li Hui, e o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Mikhail Galuzin: rejeitaram os ultimatos ocidentais para a resolução do conflito na Ucrânia, que consideravam inviáveis sem a participação de Moscovo.

A China não quer a derrota da Rússia, mas também não quer uma grande vitória da Rússia na Ucrânia. O modelo de crescimento chinês, nas últimas décadas, baseou-se na expansão económica -- e está agora em risco. Moscovo quer arrastar Pequim para o conflito com o Ocidente. Até agora, a China -- 12 vezes mais forte economicamente -- não teve qualquer interesse nisso.

Até quando?

QOSHE - O mapa chinês e o silêncio de Putin - Germano Almeida
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O mapa chinês e o silêncio de Putin

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05.03.2024

A Rússia é a agressora que é preciso travar com urgência, mas a China é o desafio sistémico de maior profundidade.

O Departamento de Defesa do Estados Unidos divulgou recentemente o relatório anual sobre os avanços da China em relação ao poderio militar. Em mais de 200 páginas, é revelado como Xi Jinping está cada vez mais empenhado em fazer da China a grande potência militar da Ásia e do Pacífico.

Pequim investiu vários milhões de dólares no último ano em desenvolvimento de tecnologia para operações terrestres, aéreas e marítimas, bem como nucleares, espaciais e de guerra eletrónica. Um dos grandes destaques na área militar observado pelo governo americano está na marinha chinesa, que aperfeiçoou a sua a frota marítima, já a maior do mundo. Atualmente, as Forças Armadas de Pequim possuem dois porta-aviões e desenvolvem o terceiro navio de assalto anfíbio, bem como destruidores de mísseis guiados, cruzadores e fragatas adicionais. Em breve, aponta o relatório do Pentágono, o regime de Xi será capaz de realizar ataques de precisão de longo alcance contra alvos terrestres, não só através dos seus submarinos, mas também por via de tropas terrestres.

O Exército Popular de Libertação modernizou os seus equipamentos e concentra armas combinadas e treino conjunto no esforço de cumprir a meta de se tornar a grande potência militar que sustentará uma nova ordem internacional, contestatária da ordem liberal e que coloque definitivamente em causa o “domínio unipolar dos EUA”.

As Forças Armadas chinesas demonstraram uma nova capacidade de fogo de longo alcance logo após a visita da Delegação do Congresso americano, então liderado por Nancy Pelosi, em agosto de 2022 a Taiwan.

A China já possui a maior marinha do mundo, com uma força de batalha total de mais de 370 navios e submarinos,........

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