Enquanto nas nossas sociedades livres e democráticas do “Ocidente alargado” se multiplicam idiotas úteis a mostrar simpatia pela narrativa falsa e propagandística do Kremlin, na Rússia prossegue a ditadura cruel de Putin.

A morte de Navalny chocou-nos e provocou-nos profunda tristeza e indignação - mas só pode ser surpresa para os mais distraídos ou ingénuos. Em menos de uma década, as três figuras russas que mais desafiaram Vladimir Putin conheceram um fim trágico.

A 27 de fevereiro de 2015, o reformista Boris Nemtsov (governador de Nijni Novgorod e membro do Conselho de Segurança Nacional russo no final dos Anos 90; deputado na Duma nos primeiros Anos 2000), levou quatro tiros pelas costas quando passeava com a mulher, Anna Durytska, numa ponte em Moscovo, muito perto do Kremlin; a 23 de agosto de 2023, Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner, morre na queda do avião que o transportava, dois meses depois de ter liderado o maior desafio a Putin em duas décadas de liderança no Kremlin, na “marcha pela Justiça”, que parou a menos de 200 quilómetros de Moscovo; a 16 de fevereiro de 2024, um mês e meio depois de ter sido enviado para uma prisão a 60 quilómetros do Ártico com condições extremas, Alexei Navalny - principal figura da oposição democrática russa - morre em circunstâncias pouco claras.

Tudo isto levanta a maior das preocupações quanto ao destino, por exemplo, de Vladimir Kara-Murza (que era próximo de Nemtsov), envenenado em 2015 e em 2017, a cumprir 25 anos de prisão por ter criticado a invasão da Ucrânia.

O que Alexei Navalny fez a 17 de janeiro de 2021 é um raro exemplo de heroísmo. Cinco meses depois de ter sido envenenado na Rússia com um agente químico do grupo Novichok, uma recuperação médica na Alemanha levou-o a decidir regressar ao seu país - mesmo sabendo que o esperava a prisão e, possivelmente, a morte.

Navalny foi a prova de que poderia haver um caminho diferente para a Rússia: mais aberto ao exterior, mais respeitador das liberdades, mais virado para o futuro e menos para um passado enviesado pelos desvarios imperialistas agressivos que levaram Putin a enveredar pela invasão total da Ucrânia.

Chegou a ter 27% numa candidatura à Câmara de Moscovo em 2013, já não conseguiu ver legalizada a sua candidatura à presidência da Rússia em 2018. Que o seu fim tenha sido num gulag revela que o padrão de comportamento de Putin continua a ser mais previsível do que muitos tentam pintar.

A exatamente um mês das eleições presidenciais na Rússia, e poucos dias depois do único candidato assumidamente anti-guerra com alguma expressão (Boris Nadezdhin, antigo deputado na Duma), Putin tem caminho livre para uma reeleição bem acima dos 80%. Como é que alguns (não tão poucos assim) veem nisto uma alternativa às democracias liberais, por muitos defeitos que as democracias em que temos vivido no mundo ocidental têm acusado nos últimos anos?

A morte chocante de Navalny não exibe força do regime de Putin. Revela, isso sim, fraqueza de caráter e uma profunda insegurança. Sobretudo quando atentamos às justificações ridículas dos círculos putinistas, como a que apresentou o presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, que responsabilizou “o Ocidente” pela morte de Navalny, elencando até três culpados diretos: “Jens Stoltenberg, Rishi Sunak e Olaf Scholz”.
Enfim.

O desaparecimento de Navalny pode ter apenas uma consequência positiva: servir de alerta para quem, no Ocidente, ainda não se apercebeu completamente do perigo que a Rússia de Putin representa para o mundo livre e que respeita as regras democráticas.
Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, garante: “Estamos no caminho certo para garantir o investimento necessário na nossa defesa, numa base transatlântica.” Esta última parte tinha um destinatário direto: os Estados Unidos, de longe o maior pilar da NATO e agora em risco pela ameaça política do trumpismo.

A mensagem da Aliança Atlântica nesta semana conturbada de desmandos de Trump e morte de Navalny foi clara: “Se Putin vencer será uma tragédia.”

Mas em Washington DC, o impasse continua. A parte boa é que quase metade dos senadores republicanos votaram a favor da ajuda militar à Ucrânia. A parte (mesmo muito) preocupante é que o speaker da Câmara dos Representantes, Mike Johnson, aceita tão cegamente os interesses egoístas da agenda eleitoral de Donald Trump que nem sequer permite uma votação na Câmara Baixa de uma proposta que recebeu amplo bipartidário no Senado.

A desvirtuação do Partido Republicano dominado pelo trumpismo é tal que já nem conta para nada que tenham sido os republicanos quem, a 24 de fevereiro de 2022, data da invasão russa da Ucrânia, mais pressionou o Presidente Biden a dar armas a Kiev, para que assim resista à agressão de Moscovo e também defende a segurança europeia.

A “estratégia do caos” leva a que Trump faça tudo para evitar que Biden tenha, até novembro, vitórias significativas no apoio à Ucrânia e na resolução da guerra Israel/Hamas. Mesmo que isso implique que, até lá, a Rússia tenha ganhos significativos no palco ucraniano e que o Irão - que, supostamente, é um inimigo dos EUA de forma mais evidente para republicanos do que para democratas - consiga utilizar os seus proxys para desestabilizar o Médio Oriente e perturbar o comércio marítimo internacional.

Por enquanto, não há alternativa aos Estados Unidos para uma efetiva defesa europeia.

Por várias razões: pela dissuasão nuclear, que continua a ter os EUA como pilar decisivo, pela falta de capacidade instalada ao nível de indústria militar na Europa e por uma questão financeira - o orçamento do Pentágono (887 mil milhões de dólares em 2024) é mais do dobro de todos os orçamentos de Defesa dos Estados-membros da UE juntos.

É certo que, neste ano de 2024, o número de países da NATO cumpridores dos 2% para a Defesa deverá saltar de 11 para 18 (entre os quais França e Alemanha, que acabam de celebrar acordos bilaterais de segurança com a Ucrânia). Portugal - que está neste momento nos 1,47% do PIB destinado à Defesa - continuará de fora e passará a fazer parte da minoria que não cumpre o compromisso celebrado em Cardiff, há uma década. Espera-se que até 10 de março, data das legislativas em Portugal, haja propostas políticas claras e realistas para abordar com seriedade esta questão.

Em 2024, o ramo europeu da NATO investirá um total de 380 mil milhões de dólares em Defesa, o que representará, precisamente, 2% do total do PIB desses países. A questão está na média. Há países que passam largamente os 2% (Polónia quase dobra, Grécia, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia, Hungria, Reino Unido, Eslovénia, Eslováquia), mas mais de uma dezena ainda não atinge essa meta.

Os países da NATO, excluindo os EUA, aumentaram a despesa militar total 32% desde 2014 (fonte: Balanço Militar 2024 publicado pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos). Ou seja: o compromisso dos 2% até 2024 vai falhar, mas foi feito esforço significativo nestes dois anos para reduzir a diferença entre EUA e os outros.

Ainda assim, as discrepâncias são evidentes: os EUA representam 70%. Se juntarmos os outros aliados extra UE da NATO (Canadá, Reino Unido, Turquia, Noruega), essa percentagem estará nos 80%, pelo que os 27 da UE contribuem com cerca de um quinto dos esforços militares da NATO.

No meio de uma torrente de reações à morte de Navalny e de declarações produzidas na Conferência de Segurança de Munique, vale a pena ler com atenção um tuit de Timothy Garton Ash: “Mensagem para o Ocidente: não é só uma questão de armas… a questão é se estamos preparados psicologicamente.”

Estamos tão longe de conseguirmos responder com segurança a essa questão.

QOSHE - Travar a Rússia exige mudança psicológica - Germano Almeida
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Travar a Rússia exige mudança psicológica

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19.02.2024

Enquanto nas nossas sociedades livres e democráticas do “Ocidente alargado” se multiplicam idiotas úteis a mostrar simpatia pela narrativa falsa e propagandística do Kremlin, na Rússia prossegue a ditadura cruel de Putin.

A morte de Navalny chocou-nos e provocou-nos profunda tristeza e indignação - mas só pode ser surpresa para os mais distraídos ou ingénuos. Em menos de uma década, as três figuras russas que mais desafiaram Vladimir Putin conheceram um fim trágico.

A 27 de fevereiro de 2015, o reformista Boris Nemtsov (governador de Nijni Novgorod e membro do Conselho de Segurança Nacional russo no final dos Anos 90; deputado na Duma nos primeiros Anos 2000), levou quatro tiros pelas costas quando passeava com a mulher, Anna Durytska, numa ponte em Moscovo, muito perto do Kremlin; a 23 de agosto de 2023, Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner, morre na queda do avião que o transportava, dois meses depois de ter liderado o maior desafio a Putin em duas décadas de liderança no Kremlin, na “marcha pela Justiça”, que parou a menos de 200 quilómetros de Moscovo; a 16 de fevereiro de 2024, um mês e meio depois de ter sido enviado para uma prisão a 60 quilómetros do Ártico com condições extremas, Alexei Navalny - principal figura da oposição democrática russa - morre em circunstâncias pouco claras.

Tudo isto levanta a maior das preocupações quanto ao destino, por exemplo, de Vladimir Kara-Murza (que era próximo de Nemtsov), envenenado em 2015 e em 2017, a cumprir 25 anos de prisão por ter criticado a invasão da Ucrânia.

O que Alexei Navalny fez a 17 de janeiro de 2021 é um raro exemplo de heroísmo. Cinco meses depois de ter sido envenenado na Rússia com um agente químico do grupo Novichok, uma recuperação médica na Alemanha levou-o a decidir regressar ao seu país - mesmo sabendo que o esperava a prisão e, possivelmente, a morte.

Navalny foi a prova de que poderia haver um caminho diferente para........

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