Alberto da Costa e Silva foi um amigo dileto dos portugueses e do mundo da nossa língua comum. É um dos grandes intelectuais do nosso tempo. O seu percurso é notável e, mais do que escritor, poeta, historiador, ensaísta, memorialista e diplomata de primeira água, foi uma presença imprescindível e um conhecedor profundo das culturas dos países de língua portuguesa, da sua influência e desenvolvimento. Foi diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madrid e Roma, sempre com destacado desempenho, quer como especialista de Relações Internacionais, quer como estudioso da historiografia africana. Foi embaixador na Nigéria, no Benim, em Lisboa (1986-90), na Colômbia e no Paraguai. Onde exerceu funções deixou sempre um rasto de competência, de conhecimento e de amizade. Em 2000, foi eleito para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras, tendo obtido o Prémio Camões em 2014 e tendo sido considerado pela União Brasileira de Letras como intelectual do ano em 2004. Até aos últimos dias, apesar do seu estado de saúde, manteve-se ativo, designadamente participando nas sessões da Academia Brasileira de Letras, sempre com oportunas intervenções.

Tendo nascido em S. Paulo, considerava-se piauiense, passando a sua infância em Fortaleza e a juventude no Rio de Janeiro. Investigador empenhado e ativo, teve desde cedo duas paixões que nunca abandonou - a poesia e a história das relações com África. Neste caso, os seus estudos são de conhecimento indispensável, apresentando leituras críticas que corrigem muitas simplificações erróneas, tantas vezes repetidas. Os Poemas Reunidos (Nova Fronteira, 2000), de grande riqueza, e o Espelho do Príncipe (1994), memórias da meninice, são exemplos de um talento literário de grande qualidade, a que devemos acrescentar O Pardal na Janela (2002), deliciosa coletânea de ensaios sobre literatura e poesia. As obras sobre as raízes africanas são excecionais de rigor e agudeza crítica: A Enxada e a Lança - a África antes dos Portugueses (1992-1996) ou A Manilha e o Libambo - a África e a Escravidão, de 1500 a 1700 (2002), além de Um Rio Chamado Atlântico (2003), reunião de 16 textos fundamentais sobre as relações históricas entre a África e o Brasil, que constituem reflexões premonitórias sobre temas que ganham importância nos caminhos novos da Antropologia e da Historiografia.

Francisco Félix de Souza - Mercador de Escravos (2004), é uma obra fundamental que narra a extraordinária aventura de quem ficou, na História e no mito, conhecido como Chachá, e onde se descreve como funcionava o tráfico de escravos, sem eufemismos, nem ilusões. Eu próprio tive oportunidade de visitar o Benim, e em especial São João Baptista de Ajudá, sob os ecos do estudo de Costa e Silva e do relato de Bruce Chatwin, guiado pelo herdeiro de Félix de Sousa, tendo estado no mítico quarto do Chachá, onde continua, ao lado do leito de pau-ferro, jacarandá ou mogno, o seu sarcófago, segundo costume ancestral. Alberto da Costa e Silva recorda: "O dono do leito jaz ao lado, sob uma campa em cuja cabeceira se ergue a imagem do santo do seu nome e devoção. Sepultaram-no como um príncipe da terra." Sentimos o caráter contraditório das referências num território em que fez as suas riquezas. E o historiador não ilude o tema. Compreende os dois lados da narrativa. "Ouço alto vivas ao seu nome. Mas o beninense que me acompanha - estou de pé, diante da Fortaleza de São João Baptista de Ajudá - não se conforma com isso e cochicha ao meu ouvido que Francisco Félix de Souza não foi aquele grande homem a quem cantam loas, mas a principal personagem de um medonho pesadelo." Eis a síntese que não pode ser esquecida. E Um Rio Chamado Atlântico, entre Brasil e Angola, prognostica o devir de uma língua e de um destino comuns com possibilidades e desafios que o diplomata antecipou...

Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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Alberto da Costa e Silva

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05.12.2023

Alberto da Costa e Silva foi um amigo dileto dos portugueses e do mundo da nossa língua comum. É um dos grandes intelectuais do nosso tempo. O seu percurso é notável e, mais do que escritor, poeta, historiador, ensaísta, memorialista e diplomata de primeira água, foi uma presença imprescindível e um conhecedor profundo das culturas dos países de língua portuguesa, da sua influência e desenvolvimento. Foi diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madrid e Roma, sempre com destacado desempenho, quer como especialista de Relações Internacionais, quer como estudioso da historiografia africana. Foi embaixador na Nigéria, no Benim, em Lisboa (1986-90), na Colômbia e no Paraguai. Onde exerceu funções deixou sempre um rasto de competência, de conhecimento e de amizade. Em 2000, foi eleito para a cadeira 9 da Academia Brasileira de Letras, tendo obtido o Prémio Camões em 2014 e tendo sido considerado pela União Brasileira de Letras como intelectual do ano em 2004. Até aos últimos dias,........

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