Às 09.00 horas de 27 de agosto de 1896, a situação no então protetorado britânico de Zanzibar era a seguinte: de um lado, Khalid, que se declarara sultão à revelia de Londres, barricado no palácio, protegido por meia-dúzia de guardas e centenas de populares; do outro, o Exército do Reino Unido, maior potência militar do mundo à época, com canhoneiros e cruzadores, no mar, e milhares de soldados bem treinados, em terra.

Resultado: a Guerra Anglo-Zanzibari terminaria, com cerca de 500 zanzibaris mortos e um inglês ferido, às 09.38. É, segundo os livros de História (e o Guinness Book), o conflito mais rápido de sempre.

Como no boxe, um peso pluma não enfrenta um peso pesado, há batalhas, como a de Zanzibar, que, de tão desiguais, tão desiguais, tão desiguais, não deviam ser combatidas.

“Não, todas as guerras, sobretudo as perdidas, são dignas de luta”, argumentarão aqueles líricos, que enchem o peito para citar o célebre diálogo de Hemingway no Adeus às Armas - “quem estará ao teu lado nas trincheiras? E isso importa? Mais do que a própria guerra” - que Hemingway jamais escreveu, nem no Adeus às Armas, nem em lado nenhum.

Vão contar essas balelas aos zanzibaris mortos depois de 38 minutos a levar com balas de canhão britânicas.

Mas esqueçamos as guerras e concentremo-nos numa história pop em que dois músicos se poupam de perder uma batalha perdida.

Conta Paul McCartney que o seu pai foi a primeira pessoa a quem ele e John Lennon apresentaram o tema She Loves You. Jim McCartney, pianista e trompetista nas horas vagas, ouviu e gostou muito. Fez apenas um reparo: “Meus filhos, como já há tantos americanismos por aí, não poderiam substituir esse ‘yeah, yeah, yeah’ por ‘yes, yes, yes’?”.

Segundo Paul, os dois Beatles entreolharam-se e, apenas por respeito a mr. Jim, não se desataram a rir. Eles já entendiam, naquele julho de 1963, que de tão desiguais, tão desiguais, tão desiguais, há batalhas que não devem ser combatidas.

Para os falantes do inglês europeu, uns 70 milhões, travar uma guerra contra os falantes do inglês americano, mais de 350 milhões, seria um ato tão suicida como aquele do sultão de Zanzibar anos antes.

Estas introduções, a bélica e a musical, vêm a propósito de uma reportagem de Paula Sofia Luz, no DN, no final de 2021, que volta e meia regressa às discussões, quase sempre estéreis, entre brasileiros e portugueses no pântano da internet: naquele texto, explicava-se que as crianças portuguesas, por ficarem ainda mais expostas aos conteúdos de YouTubers brasileiros na pandemia, começaram a usar “grama” em vez de “relva”, “bala” em vez de “rebuçado”, “geladeira” em vez de “frigorífico”.

Alguns pais relativizaram - afinal, quando miúdos, eles também ficaram sujeitos às influências das telenovelas brasileiras e nem por isso andam por aí a chamarem-se “cafajeste” uns aos outros. Mas sabem o que “cafajeste” significa - o que é um ganho, jamais uma perda.

Assim como foi um ganho para os Beatles - e que ganho - entrar no mercado americano.

Outros pais portugueses, coitados, mesmo em plena era digital, têm, seis décadas depois, os mesmos medos do falecido e analógico Jim McCartney.

Esses pais, dada a proporção de falantes de 1 para 21 de português de Portugal para português do Brasil no mundo, são como o sultão suicida: contra os canhões, marcham, marcham.

Jornalista, correspondente em São Paulo

QOSHE - “She Loves You, Yes, Yes, Yes” - João Almeida Moreira
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“She Loves You, Yes, Yes, Yes”

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08.02.2024

Às 09.00 horas de 27 de agosto de 1896, a situação no então protetorado britânico de Zanzibar era a seguinte: de um lado, Khalid, que se declarara sultão à revelia de Londres, barricado no palácio, protegido por meia-dúzia de guardas e centenas de populares; do outro, o Exército do Reino Unido, maior potência militar do mundo à época, com canhoneiros e cruzadores, no mar, e milhares de soldados bem treinados, em terra.

Resultado: a Guerra Anglo-Zanzibari terminaria, com cerca de 500 zanzibaris mortos e um inglês ferido, às 09.38. É, segundo os livros de História (e o Guinness Book), o conflito mais rápido de sempre.

Como no boxe, um peso pluma não enfrenta um peso pesado, há batalhas, como a de Zanzibar, que, de tão desiguais, tão desiguais, tão desiguais, não deviam ser combatidas.

“Não, todas as guerras, sobretudo as perdidas, são dignas de........

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