Aterrorizado pela possibilidade de ser preso, seja porque ajudou a planear um desastrado golpe de estado, seja porque desviou para o próprio bolso joias oferecidas pelos sauditas ao estado brasileiro, seja porque fez vista grossa a casos de corrupção na compra, atrasadíssima, de vacinas na pandemia, Jair Bolsonaro optou por um discurso moderado na manifestação que organizou em sua homenagem no domingo, 25, em São Paulo.

“Bolsonaro moderado”, entretanto, é um paradoxo. O capitão do exército que organizou um motim pelo aumento do soldo dos militares, o deputado federal que disse que só não violava uma outra parlamentar por ela ser feia, o candidato presidencial que comparou negros a animais ou o presidente eleito que prometeu mandar os rivais para a “ponta da praia”, base da marinha onde se executavam presos políticos, deve a sua sinistra popularidade ao radicalismo, antónimo de moderação.

E enquanto o caro leitor, português ou brasileiro, passou a adolescência a admirar Eusébio, Pelé, Amália, Chico Buarque, Fernando Pessoa, Ayrton Senna, Gisele Bündchen, CR7 ou outro herói de outra era ou de outra área, o ídolo do jovem Jair era Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador-símbolo da ditadura militar do Brasil (1964-1985). Em 2021, seis anos após a sua morte, Ustra foi elevado pelo presidente Bolsonaro a marechal, patente dada no Brasil apenas aos heróis de guerra.

O deputado Bolsonaro dedicou ainda a Ustra o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma das torturadas pelo antigo coronel do infame DOI-CODI, a PIDE brasileira, cujo ponto alto das suas sessões, segundo relatos das presas políticas, era colocar um rato na vagina das detidas.

E A Verdade Sufocada, memórias de Ustra, foi o livro de cabeceira de Bolsonaro, segundo contou o próprio, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2018. Ultimamente, porém, depois de perceber que há crentes trouxas o suficiente para votar nele, para fazer figuras tristes de verde e amarelo em frente a quartéis e para encher a Avenida Paulista ao primeiro chamado, Bolsonaro tem dito, como os demais candidatos da extrema-direita mundo afora, que é a Bíblia.

Mas, como íamos dizendo, o fã de Ustra, moderou-se. Na Paulista, em vez de chamar os juízes do Supremo Tribunal Federal de “canalhas”, como há dois anos, ainda presidente, falou em “pacificação” porque o pânico de ser acordado às 06h00 por polícias com uma ordem de prisão faz milagres.

No meio do discurso, entretanto, desvalorizou ter sido encontrada pela polícia no seu telemóvel uma minuta com o passo a passo do golpe. “Golpe? Golpe é tanque na rua, é arma, conspiração, nada disso foi feito no Brasil, golpe é uma minuta do decreto de estado de defesa usando a Constituição? Tenham paciência”, afirmou, em público, admitindo pela primeira vez a existência da tal minuta, isto é, produzindo prova contra si próprio.

Porque 72 horas antes da manifestação, Bolsonaro, ao ter oportunidade de se defender perante a polícia sobre a trama golpista de que o acusam de participar, escolheu, ao lado do seu advogado, o direito constitucional de ficar calado no depoimento.

São as delícias da democracia, caro Jair. Estivéssemos na ditadura militar e talvez um Ustra qualquer, o pendurasse no teto e, ao soco, ao pontapé, com unhas arrancadas, e, quem sabe, o auxílio de um ratinho, o obrigasse a confessar o golpe.



QOSHE - Bolsonaro e o torturador - João Almeida Moreira
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Bolsonaro e o torturador

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29.02.2024

Aterrorizado pela possibilidade de ser preso, seja porque ajudou a planear um desastrado golpe de estado, seja porque desviou para o próprio bolso joias oferecidas pelos sauditas ao estado brasileiro, seja porque fez vista grossa a casos de corrupção na compra, atrasadíssima, de vacinas na pandemia, Jair Bolsonaro optou por um discurso moderado na manifestação que organizou em sua homenagem no domingo, 25, em São Paulo.

“Bolsonaro moderado”, entretanto, é um paradoxo. O capitão do exército que organizou um motim pelo aumento do soldo dos militares, o deputado federal que disse que só não violava uma outra parlamentar por ela ser feia, o candidato presidencial que comparou negros a animais ou o presidente eleito que prometeu mandar os rivais para a “ponta da praia”, base da marinha onde se executavam presos políticos, deve a sua sinistra........

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