No dia 13, um casal hospedado num apartamento em Muro Alto, na região balnear de Porto de Galinhas, em Pernambuco, no Nordeste do Brasil, reparou numa tomada ao lado da cama, ideal para conectar telemóveis e demais aparatos eletrónicos.

Porém, no primeiro dia de férias, o marido e a mulher tentaram uma vez, duas vezes e nada de a tomada carregar 1% que fosse dos aparelhos. Insistiram no dia seguinte, experimentaram adaptadores e outras geringonças e nada outra vez. Até que ao terceiro dia, com a ajuda de uma lanterna, notaram que a tomada era, afinal, uma câmara oculta apontada à cama do casal.

A Polícia Civil investiga crime de “registo não-autorizado de intimidade sexual”, segundo o artigo 216.º do Código Penal. E o bisbilhoteiro, que ainda não se sabe quem é, arrisca, segundo juristas, pena de detenção de seis meses a um ano, além de multa.

Entretanto, aquela câmara apontada à cama de um apartamento de férias, notícia de pé de página nos principais jornais brasileiros, não passou de metafórico preâmbulo das manchetes que chegariam a esses mesmos jornais uma semana depois - o crime que ocorreu no apartamento foi replicado, afinal de contas, em todo o Brasil.

No dia 25, a Polícia Federal (PF) fez buscas no gabinete do deputado Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante a gestão de Jair Bolsonaro, por suspeita de uso do organismo, a favor dos interesses pessoais do então presidente.

Dia 29, outra fase da operação chegou à casa de Carlos Bolsonaro, o segundo dos filhos de Jair, a quem o pai atribuiu a condução do Gabinete do Ódio, onde se arrasavam reputações dos inimigos do bolsonarismo.

A polícia diz ter provas de que a Abin, sob Bolsonaro, utilizou serviços ilícitos de contrainteligência para tentar produzir prova a favor de Renan Bolsonaro, o quarto filho do então presidente envolvido em negociatas estranhas. E para preparar relatórios de defesa do senador Flávio Bolsonaro, o primogénito, enterrado no caso de desvios de salários de assessores de fachada para o próprio bolso.

Diz ainda a PF que dois juízes do Supremo, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, foram vigiados pela Abin bolsonarista. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados à época, e Camilo Santana, então governador do Ceará e hoje ministro de Lula da Silva, também estavam sob observação - a Abin de Bolsonaro sabia, por monitoramento celular, onde eles estavam e com quem se encontravam.

Assim como uma das procuradoras a cargo da investigação da execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes e mais centenas de pessoas que, legitimamente, se sentem como o casal de Porto de Galinhas, porque a Abin de Bolsonaro agia como um SNI, o serviço de informações da ditadura - ou como uma PIDE, para deixar as coisas bem claras do outro lado do Atlântico.

E quem avisou a polícia do suposto crime, curiosamente, foi o próprio Bolsonaro, que, num Conselho de Ministros em 2020, contou ter “um sistema de informações particular”.

A Polícia Federal investiga crimes de organização criminosa, invasão de dispositivo informático, de intercetação de comunicações telefónicas e de quadrilha. E os bisbilhoteiros, que podem muito bem ser Alexandre Ramagem e Carlos Bolsonaro, arriscam, segundo juristas, pena até 16 anos em regime fechado.


Jornalista, correspondente em São Paulo

QOSHE - Brasil bisbilhotado - João Almeida Moreira
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Brasil bisbilhotado

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01.02.2024

No dia 13, um casal hospedado num apartamento em Muro Alto, na região balnear de Porto de Galinhas, em Pernambuco, no Nordeste do Brasil, reparou numa tomada ao lado da cama, ideal para conectar telemóveis e demais aparatos eletrónicos.

Porém, no primeiro dia de férias, o marido e a mulher tentaram uma vez, duas vezes e nada de a tomada carregar 1% que fosse dos aparelhos. Insistiram no dia seguinte, experimentaram adaptadores e outras geringonças e nada outra vez. Até que ao terceiro dia, com a ajuda de uma lanterna, notaram que a tomada era, afinal, uma câmara oculta apontada à cama do casal.

A Polícia Civil investiga crime de “registo não-autorizado de intimidade sexual”, segundo o artigo 216.º do Código Penal. E o bisbilhoteiro, que ainda não se sabe quem é, arrisca, segundo juristas, pena de detenção de seis meses a um ano,........

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