Lamentavelmente, Cleriston Cunha morreu na prisão, dia 20 de novembro, vítima de ataque cardíaco.

Era acusado de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, entre outros crimes, por ter depredado, com mais 2150 bolsonaristas, a Praça dos Três Poderes, dia 8 de janeiro, ao exigir o regresso da ditadura militar.

Por falar em ditadura militar, dia 27 de agosto de 1964, estava ela a começar, quatro polícias foram contratados por um empresário do (ilegal) Jogo do Bicho para matar um marginal conhecido como Cara de Cavalo, morador na Favela do Esqueleto, no Rio de Janeiro, que atrapalhava os negócios.

Apercebendo-se da emboscada, Cara de Cavalo trocou tiros com eles, matou um, Milton Le Cocq, e fugiu. Os colegas de Le Cocq lançaram então uma caça ao homem que culminou com a execução, após mais de 100 tiros, de Cara de Cavalo, e a criação do Esquadrão Le Cocq, primeiro grupo de extermínio do Brasil.

Depois de, abençoado pelos generais, matar impunemente na ditadura, o Le Cocq adaptou-se ao jogo democrático, elegendo, em 1991, um dos membros, Delegado Sivuca, como deputado estadual, sob o slogan:"Bandido bom é bandido morto".

Alguns ingénuos acharam que o slogan, por soar tão medieval, não atrairia ninguém além do nicho de psicopatas saudosistas da ditadura militar.

Mesmo depois do "bandido bom é bandido morto" chegar a Brasília, pela voz do deputado federal Jair Bolsonaro, esses ingénuos continuaram a encolher os ombros - este parlamentar é demasiado tosco, prognosticaram.

Até, em outubro de 2018, o tosco e o slogan subirem a rampa do Planalto validados por 60 milhões de eleitores.

Durante o bolsonarismo, o Escritório do Crime, versão século XXI do Le Cocq, passou a circundar os corredores do poder: o chefe do grupo de matadores de aluguer foi professor de tiro de Flávio Bolsonaro e empregava metade da família no gabinete do, hoje, senador; e o atirador do Escritório, acusado de executar Marielle Franco, partilhava condomínio com Jair e planeava ser sogro do filho caçula do presidente.

Nas ruas, bolsonaristas gritavam, eufóricos: "Bandido bom é bandido morto". Na internet, regozijavam-se com a execução de criminosos em operações policiais, reagindo às fotos dos cadáveres ainda quentes com o slogan e emojis de gargalhadas. E às notícias sobre as condições sub-humanas nas cadeias do Brasil, respondiam com um slogan derivado: "Direitos Humanos só para humanos direitos."

Bolsonaro chegou até a usar uma T-shirt com a frase "Direitos Humanos: esterco da vagabundagem" e um sorriso alarve no rosto.

Mas a 30 de outubro do ano passado o alarve foi extirpado do poder. E, a 8 de janeiro, 2151 bolsonaristas, entre os quais o falecido Cleriston, passaram da qualidade de justiceiros sanguinários a presos comuns, sentindo na pele as tais condições sub-humanas das cadeias do Brasil.

Num plot twist, deputados de extrema-direita denunciaram então "graves violações" aos mesmos Direitos Humanos que antes desprezavam. E Bolsonaro compareceu numa homenagem a Cleriston, desta vez com uma T-shirt com a cara do morto estampada e ar pesaroso.

Aliás, há mais de um ano que não se ouve nas ruas o slogan bárbaro do Delegado Sivuca.

Entretanto, registe-se que Cleriston sofria sequelas da covid num país onde os bolsonaristas radicais foram aconselhados a não se vacinarem.

Jornalista, correspondente em São Paulo

QOSHE - O slogan do Delegado Sivuca - João Almeida Moreira
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O slogan do Delegado Sivuca

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21.12.2023

Lamentavelmente, Cleriston Cunha morreu na prisão, dia 20 de novembro, vítima de ataque cardíaco.

Era acusado de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, entre outros crimes, por ter depredado, com mais 2150 bolsonaristas, a Praça dos Três Poderes, dia 8 de janeiro, ao exigir o regresso da ditadura militar.

Por falar em ditadura militar, dia 27 de agosto de 1964, estava ela a começar, quatro polícias foram contratados por um empresário do (ilegal) Jogo do Bicho para matar um marginal conhecido como Cara de Cavalo, morador na Favela do Esqueleto, no Rio de Janeiro, que atrapalhava os negócios.

Apercebendo-se da emboscada, Cara de Cavalo trocou tiros com eles, matou um, Milton Le Cocq, e fugiu. Os colegas de Le Cocq lançaram então uma caça ao homem que culminou com a execução, após mais de 100........

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