Ao dizer, no último domingo, em Adis Abeba, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum momento histórico, ou, aliás, existiu, quando Hitler decidiu matar os judeus”, Lula causou, logicamente, uma crise diplomática com Israel.

Netanyahu declarou o presidente do Brasil “persona non grata” e mandou o ministro dos Negócios Estrangeiros dar um raspanete, em pleno memorial do Holocausto, ao embaixador brasileiro. Ofendido com a reação, Lula chamou o diplomata de volta a Brasília.

No plano interno, a frase mereceu críticas do presidente do Senado, um aliado tradicional do governo, de Jaques Wagner, compagnon de route de Lula por cinco décadas mas judeu de origem, editoriais pesados dos grandes jornais e até um pedido de impeachment da cómica oposição bolsonarista.

Mas, afinal, o que motivou Lula?

Uns dizem que ele falou com o coração (ou com o fígado), que costuma ser mau conselheiro em questões geoestratégicas. Disse o que pensava, soltou o que estava entalado na garganta, foi sincero – e, ao sê-lo, cometeu aquilo que em política é chamado de sincericídio.

Outros acusam-no de ingenuidade por ter cometido um sincericídio incitado, porque antes de chegar à capital da Etiópia estivera reunido no Cairo, por horas, com Abdel Fattah al-Sisi, presidente egípcio, Ahmed Gheit, secretário-geral da Liga Árabe, e Mohammad Shtayyeh, primeiro-ministro da Autoridade Nacional Palestina, que lhe repetiram aos ouvidos a palavra “genocídio” a propósito de Gaza.

Há quem veja, entretanto, um gesto calculado do experimentado presidente do Brasil. Afinal, nem a comunidade judaica no país, embora não desprezível, tem tamanho suficiente para o afetar do ponto de vista eleitoral, nem o poderoso mas pequeno país do Médio Oriente, destino de meros 0,2% do total das exportações, é um cliente comercial de peso.

Em contrapartida, ao atacar Telavive, Lula marcou pontos entre os países africanos, na maioria muçulmanos, cujos representantes o receberam, horas antes daquela frase, como uma espécie de líder do Sul Global na cimeira da União Africana.

“Tudo, muito ou pouco, que o Brasil tem eu quero compartilhar com o continente africano porque nós temos uma dívida histórica de 300 anos de escravidão e a única forma de pagar é com solidariedade e com muito amor”, afirmou, aplaudido de pé.

Entretanto, fosse por sincericídio, ingenuidade ou calculismo, ao criticar o governo de Israel pela resposta desproporcional ao ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro, Lula cometeu, no mínimo, um erro de seis letras. Ei-las: Hitler.

Já nos anos 50, o filósofo germano-americano Leo Strauss cunhara a expressão, propositalmente num latim macarrónico, Reductio ad Hitlerum para classificar quem cai no facilitismo de acusar o outro de “nazi” numa debate.

Na era da internet, o escritor americano Mike Godwin aprimorou a teoria ao desenvolver a Lei de Godwin – “quanto mais uma discussão online se alonga maior a probabilidade de alguém ser comparado a Hitler”. E, remata a lei, “quem o faz, perde a discussão”.

Da mesma maneira que não se fala em bombas perante um sobrevivente de Hiroshima, nem se faz piadas sobre Bin Laden no entorno do Ground Zero, também não se usa aquela palavra de seis letras a propósito de Israel. Sob pena de perder, como Lula perdeu, a discussão.

QOSHE - Reductio ad Hitlerum - João Almeida Moreira
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Reductio ad Hitlerum

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22.02.2024

Ao dizer, no último domingo, em Adis Abeba, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum momento histórico, ou, aliás, existiu, quando Hitler decidiu matar os judeus”, Lula causou, logicamente, uma crise diplomática com Israel.

Netanyahu declarou o presidente do Brasil “persona non grata” e mandou o ministro dos Negócios Estrangeiros dar um raspanete, em pleno memorial do Holocausto, ao embaixador brasileiro. Ofendido com a reação, Lula chamou o diplomata de volta a Brasília.

No plano interno, a frase mereceu críticas do presidente do Senado, um aliado tradicional do governo, de Jaques Wagner, compagnon de route de Lula por cinco décadas mas judeu de origem, editoriais pesados dos grandes jornais e até um pedido de impeachment da cómica oposição bolsonarista.

Mas,........

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