Em Portugal, onde praticamente um em cada cinco eleitores votou no Chega, políticos, politólogos e demais observadores já devem ter começado a falar em “diálogo”, em “construção de pontes” e em “busca de um denominador comum” com o mais de um milhão de portugueses que optaram pelo partido.

É louvável.

Porém, quem tem a experiência acumulada de uns sete anos na República Evangélica do Bolsonaristão, onde, em vez de um quinto, os votantes da extrema-direita representam metade do eleitorado, o que equivale, não a um, mas a quase 60 milhões de pessoas, deve desde já advertir, tendo em conta o parentesco entre as tribos, que não vai ser fácil “construir pontes”.

O primeiro passo é superar o cheiro a enxofre do discurso dos indivíduos com quem se pretende “buscar um denominador comum” - a simpatia pela ditadura e respetivos torturadores, a confusão entre política e religião causada por falsos profetas, a defesa de valores medievais na área comportamental ou o racismo às vezes velado, outras exposto, tudo embrulhado num sistema de desinformação tosco, mas eficaz.

Vencido, à base de oração, de ioga ou de medicação forte, aquele passo, surge o segundo, mais duro ainda, porque não depende só de nós: como nos fazermos ouvir, como ter o tal “diálogo”?

Para entender a dificuldade, eis um apanhado de conversas mantidas com membros da seita bolsonarista ao longo de anos.

“Olhe que eu li no jornal que...”.

Interrupção imediata: “Deve ter sido na Foice de S. Paulo [forma como o bolsonarismo se refere ao jornal liberal, na economia e nos costumes, Folha de S. Paulo]”.

“Não, por acaso até foi no Estadão [o mais conservador dos grandes jornais brasileiros].

Interrupção: “Para mim é tudo a mesma porcaria, jornalistas são todos esquerdalhas”.

“Mas a própria The Economist...

Interrupção: “Os jornalistas são esquerdalhas no mundo todo”.

“Ok, mas o que eu li não foi em nenhum editorial, nem coluna de opinião, era com base num estudo da Universi...”

Interrupção: “E você ainda acredita em universidades? Pelamor... Lá é tudo maconheiro comunista, dos professores aos alunos.”

“Bom, mas segundo um estudo da ONU...”

Interrupção: “Ah, você tá de brincadeira se me começar a falar nas organizações globalistas socialistas.”

“De qualquer forma, quem vai ganhar as eleições, segundo a última sondagem...”

Interrupção: “Deve ter sido feita pelo Datafake [como o bolsonarismo chama o Datafolha, principal instituto de pesquisas brasileiro], eu confio é no Datapovo, no voto”.

“Então mas no voto quem ganhou foi o Lu...”

Interrupção: “Se você acredita mesmo que o voto eletrónico é sério, acabamos a conversa aqui.”

Ou seja, transportando para o futebol, é como conversar com alguém que não acredita nem na equipa rival, nem no árbitro, nem na relva, nem na bola.

Transportado para a sala de aula, é como se os piores alunos, ressentidos com os melhores alunos e com os professores, trocassem o conhecimento adquirido pela Humanidade ao longo de milénios estampado nos manuais por realidades paralelas difundidas em grupos de WhatsApp para, dessa forma, ter boas notas.

Mas, na verdade, os membros da seita, nem se importam tanto em passar por burros. Jamais admitem é passar por ingénuos, como nós, os que acreditamos que o homem foi à Lua ou que a Terra é redon...

Interrupção: “Você não acredita nessa bobagem de Terra redonda, né?”

QOSHE - Um papinho com terraplanistas - João Almeida Moreira
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Um papinho com terraplanistas

8 1
21.03.2024

Em Portugal, onde praticamente um em cada cinco eleitores votou no Chega, políticos, politólogos e demais observadores já devem ter começado a falar em “diálogo”, em “construção de pontes” e em “busca de um denominador comum” com o mais de um milhão de portugueses que optaram pelo partido.

É louvável.

Porém, quem tem a experiência acumulada de uns sete anos na República Evangélica do Bolsonaristão, onde, em vez de um quinto, os votantes da extrema-direita representam metade do eleitorado, o que equivale, não a um, mas a quase 60 milhões de pessoas, deve desde já advertir, tendo em conta o parentesco entre as tribos, que não vai ser fácil “construir pontes”.

O primeiro passo é superar o cheiro a enxofre do discurso dos indivíduos com quem se pretende “buscar um denominador comum” - a simpatia pela ditadura e respetivos torturadores, a confusão........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play