A viagem de São Paulo para Buenos Aires é curtinha: duas horas e meia de voo. Já a de Buenos Aires para São Paulo demora cinco anos. Sim, na maior cidade brasileira vive-se 2023. Na capital argentina vive-se ainda o 2018 brasileiro.
Os eleitores de Milei passeiam-se na rua, como os de Bolsonaro se passeavam há cinco anos, com um sorriso idiota na cara e um entusiasmo infantil no peito, achando que mudaram o país, o mundo, a história. E os votantes de Massa, como os de Haddad em 2018, parecem atordoados pelo fim dos tempos.
Na campanha, Milei disse as maiores barbaridades - contra o Papa, contra Maradona, contra os veteranos das Malvinas - mas nada parecia atingi-lo, da mesma forma que Bolsonaro, há cinco anos, mesmo depois de ferir a inteligência, de agredir a lógica, de cultuar o atraso, de declarar guerra à civilização, saia sempre ileso da sondagem seguinte.
Era, estúpidos eleitores de Massa e Haddad, a economia. A direita tradicional, com Macri, de 2015 a 2019, e a esquerda peronista, com Fernández, de 2019 a 2023, deixaram a inflação argentina perto de 150% - por que não, então, dar uma oportunidade a El Loco? A culpa da crise económica de 2015 foi do PT, partido da então presidente, mas se também o PSDB, némesis do partido de Lula, estava envolvido até ao pescoço no massacre mediático da Lava Jato, por que não, então, dar uma oportunidade a um bronco capitão?
Por outro lado, os brasileiros progressistas de 2018 perceberam, à força, que a declaração de voto de Chico Buarque vale muito menos em campanha do que milhões de eleitores expostos a uma fake news de corrente de Whatsapp - os argentinos só agora começam a perceber que memes de tik tokers ultraliberais são mais poderosos eleitoralmente do que os recados sóbrios de Ricardo Darín. E todos, brasileiros e argentinos, já terão concluído que o anti-bolsonarista Leo Di Caprio ou a anti-mileista Taylor Swift nem sequer constam dos cadernos eleitorais.
Entretanto, no discurso de Milei, como no de Bolsonaro de há cinco anos, não faltou o ataque preventivo às urnas, a diferença é que o brasileiro as atacava por, no país dele, serem eletrónicas e o argentino por, no dele, não serem.
Um e outro, além disso, adotaram a expressão "cidadão de bem". Se na Argentina ainda não se sabe ao certo o que isso significa, aqui vem uma dica do Brasil, uma dica do futuro: os "cidadãos de bem" tanto podem ser pastores, como o ministro da Educação que atribuía verbas estatais apenas às cidades cujos prefeitos lhe retribuíam em pepitas de ouro, militares, como os oficiais que encomendaram fortunas em próteses penianas e Viagra, deputados moralistas, como aquele parlamentar que, revistado pela polícia, tinha 30 mil reais nas cuecas, ou o próprio líder da organização, que enfiou joias sauditas, propriedade do Estado, no bolso.
Finalmente, Milei garante que vai ser o terror das "castas" políticas tradicionais. Mas, em 2018, Bolsonaro, também prometia acabar com a "velha política" (mesmo sendo um velho político), antes de, ameaçado por impeachment, entregar o orçamento de estado aos parlamentares mais clientelistas, num Mensalão a céu aberto.
Milei tem potencial, sim, para causar estragos, como Bolsonaro causou, mas os pesos e contrapesos do sistema encarregam-se, para o bem ou para o mal, de amenizar arroubos do mais tresloucado dos líderes numa democracia. Sublinhe-se: numa democracia, para amenizar os arroubos dos tresloucados, é preciso que os países se mantenham democracias.
Jornalista, correspondente do DN em São Paulo
Uma viagem de cinco anos
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23.11.2023
A viagem de São Paulo para Buenos Aires é curtinha: duas horas e meia de voo. Já a de Buenos Aires para São Paulo demora cinco anos. Sim, na maior cidade brasileira vive-se 2023. Na capital argentina vive-se ainda o 2018 brasileiro.
Os eleitores de Milei passeiam-se na rua, como os de Bolsonaro se passeavam há cinco anos, com um sorriso idiota na cara e um entusiasmo infantil no peito, achando que mudaram o país, o mundo, a história. E os votantes de Massa, como os de Haddad em 2018, parecem atordoados pelo fim dos tempos.
Na campanha, Milei disse as maiores barbaridades - contra o Papa, contra Maradona, contra os veteranos das Malvinas - mas nada parecia atingi-lo, da mesma forma que Bolsonaro, há cinco anos, mesmo depois de ferir a inteligência, de agredir a lógica, de cultuar o atraso, de declarar guerra à civilização, saia sempre ileso da sondagem seguinte.
Era,........
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