A descoberta do mais recente filme de Víctor Erice, Fechar os Olhos - revelado em maio, no Festival de Cannes, agora chegado às salas portuguesas com chancela da distribuidora Nitrato Filmes - não pode deixar de envolver emoções muito especiais. Para mim, em todo o caso.

Quando eu e o produtor Rodrigo Areias convidámos Erice para participar no plano de produção de Guimarães 2012/Capital Europeia da Cultura, sabíamos da sua condição de "exilado", não apenas da produção espanhola, mas de todo o cinema europeu. Afinal de contas, na altura, a sua última longa-metragem - O Sol do Marmeleiro, admirável documentário sobre o trabalho do pintor Antonio López - tinha surgido 20 anos antes (também em Cannes, ganhara o Prémio do Júri de 1992, ex-aequo com Uma Vida Independente, de Vitali Kanevsky). E se é verdade que havia nele um claro desencanto por tão grande hiato, não é menos verdade que o seu desejo de cinema se mantinha intacto, cristalino, atrevo-me a dizer, juvenil.

Em Guimarães filmou Vidros Partidos, sobre as memórias de uma fábrica de têxteis desativada em 2002, uma das curtas-metragens que integra a longa Centro Histórico (completada com contribuições de Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Aki Kaurismäki). Para lá da riqueza e complexidade de cada um dos seus filmes, Erice sempre encarou o cinema como uma entidade que envolve os humanos, os seus esplendores e misérias - não uma "reprodução" linear e televisiva do que quer que seja, mas sim uma arte vital.

Fechar os Olhos, ​​​​​​um filme.

Nos seus filmes, a dicotomia muito popular no tempo das novas vagas - o cinema "ou" a vida - dá lugar a uma afirmação visceral: o cinema "é" a vida. Na sua primeira longa-metragem, O Espírito da Colmeia (1973), a personagem central é mesmo uma menina de 6 anos, interpretada por Ana Torrent, que vive a ressaca da Guerra Civil espanhola através da perturbante descoberta, num cinema ambulante, do filme Frankenstein (1931), de James Whale. E porque tudo isto envolve os mais delicados laços artísticos e afetivos, importa referir que Ana Torrent se tornou um nome emblemático do cinema de Espanha, desempenhando agora um dos papéis principais em Fechar os Olhos.

Depois de O Espírito da Colmeia, Erice realizou O Sul (1983) e o já citado O Sol do Marmeleiro - ao longo de meio século de labor, Fechar os Olhos é apenas, portanto, a sua quarta longa-metragem. Desta vez, mais do que nunca, o cinema enreda-se com todos os elementos do filme, já que estamos perante a história de um ator, Julio Arenas (José Coronado), ou melhor, da sua ausência: desaparece de forma misteriosa durante uma rodagem e, apesar de os anos passarem sem que se vislumbre uma explicação para o seu desaparecimento, o realizador que o filmou pela última vez, Miguel Garay (Manolo Solo), não desiste de o procurar...

Fechar os Olhos é, em tudo e por tudo, um filme fora de moda - e contra as modas. Desde logo, porque rejeita a instrumentalização do cinema como confirmação de qualquer modelo de espectáculo antecipadamente formatado. Depois, porque, em total oposição à ditadura cultural do politicamente correto, dispensa a convocação de "temas" ou "causas" que apenas sirvam como caução mediática. Finalmente, porque celebra o cinema como território de uma ética que o mundo parece querer dispensar.

Há filmes que nos ensinam a difícil arte de olhar o mundo: Fechar os Olhos é um desses filmes.

Ética? A aceleração comunicacional em que vivemos tende a expor o tempo como fenómeno de um presente obrigatoriamente espetacular em que todas as memórias são desvalorizadas (ou, o que vai dar ao mesmo, reduzidas a estereótipos da moda). Se Erice expõe o cinema como uma relação sistemática - e, num certo sentido, obsessiva - com o passado, não é por qualquer complacência nostálgica. Acontece que, em Fechar os Olhos, a relação quente com o passado não é estranha ao calor emocional do presente.

A cena em que um pequeno grupo de personagens recorda a canção My Rifle, My Pony and Me, do clássico Rio Bravo (1959), de Howard Hawks, não é uma mera citação. Assistimos a uma genuína atualização simbólica da memória desse clássico do western que, como se prova, não ficou congelado no tempo - existe no presente, para o presente, transfigurando e enriquecendo o presente.

A demanda do ator "perdido" envolve essa mesma dinâmica existencial: como vivemos com o legado daqueles que não esquecemos? Ou ainda: como é que eles, mesmo quando recobertos pelo silêncio da morte, integram o mapa do nosso presente?

Momento exemplar de tudo isso é aquele em que Miguel reencontra a fotografia de uma jovem que Julio conservou num caderno de apontamentos. Começamos por reconhecer a fotografia como um objeto de ficção, já que a vimos como elemento do filme que Julio estava a rodar quando desapareceu. Mas guardada por Julio, redescoberta por Miguel, a fotografia emerge como objeto de uma terra de ninguém, em que vida e morte se enlaçam através do cinema. Em tempos de saturação de imagens e desqualificação do desejo de conhecer, são raros os artistas que, como Erice, nos ensinam o valor insubstituível do olhar - mesmo quando fechamos os olhos.

Jornalista

QOSHE - A lição de Víctor Erice - João Lopes
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A lição de Víctor Erice

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10.12.2023

A descoberta do mais recente filme de Víctor Erice, Fechar os Olhos - revelado em maio, no Festival de Cannes, agora chegado às salas portuguesas com chancela da distribuidora Nitrato Filmes - não pode deixar de envolver emoções muito especiais. Para mim, em todo o caso.

Quando eu e o produtor Rodrigo Areias convidámos Erice para participar no plano de produção de Guimarães 2012/Capital Europeia da Cultura, sabíamos da sua condição de "exilado", não apenas da produção espanhola, mas de todo o cinema europeu. Afinal de contas, na altura, a sua última longa-metragem - O Sol do Marmeleiro, admirável documentário sobre o trabalho do pintor Antonio López - tinha surgido 20 anos antes (também em Cannes, ganhara o Prémio do Júri de 1992, ex-aequo com Uma Vida Independente, de Vitali Kanevsky). E se é verdade que havia nele um claro desencanto por tão grande hiato, não é menos verdade que o seu desejo de cinema se mantinha intacto, cristalino, atrevo-me a dizer, juvenil.

Em Guimarães filmou Vidros Partidos, sobre as memórias de uma fábrica de têxteis desativada em 2002, uma das curtas-metragens que integra a longa Centro Histórico (completada com contribuições de Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Aki Kaurismäki). Para lá da riqueza e complexidade de cada um dos........

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