Como vemos a política? Tendo em conta que as “mensagens” e “argumentações” políticas passaram a acontecer quase exclusivamente no espaço televisivo, a pergunta atrai outra, regularmente evitada pela maioria dos elementos das classes política e jornalística: como é que a política nos vê? Eis um verdadeiro tabu da nossa vida cultural, confirmado pela recente campanha eleitoral: à beira dos 50 anos do 25 de abril, todas as forças democráticas escolheram não apresentar programas elaborados de políticas culturais.

Mudemos de assunto. Ou talvez não. Neste tempo em que filmar a política e as suas derivações é uma tarefa encarada como uma “reprodução” pitoresca (lembremos Downton Abbey) ou uma “clonagem” figurativa (The Crown poderá servir de exemplo), a série The Regime (HBO Max) constitui um salutar desafio às convenções dominantes - enfim, não seria grande esforço traduzir para “O Regime”, mas há uma banalização informativa que continua a pontuar a oferta das plataformas virtuais.

A primeira das convenções posta em causa exprime-se através de um lugar-comum mediaticamente muito poderoso sobre a “justeza” das representações femininas. No limite de tal lugar-comum, uma atriz só seria digna do seu género quando interpreta alguma mulher que se distinga pela condição de modelo feminino ou feminista, obrigatoriamente “militante”. Ora, em The Regime, a notável Kate Winslet (também produtora executiva da mini-série) interpreta Elena Vernham, chanceler de um país fictício da Europa central que, além de dirigir um estado totalitário, está longe de ser um símbolo exemplar de compaixão pelo seu povo.

Reconhecer a dimensão de farsa política de The Regime remete-nos para todo um imaginário - histórico e cinéfilo - que a atual inflação de séries e mini-séries está longe de esgotar. Estamos, de facto, perante um herdeiro direto de uma tradição do cinema britânico que terá o seu símbolo mais esclarecedor no clássico Dr. Strangelove/Dr. Estranhoamor (1964), de Stanley Kubrick, comédia dantesca sobre o uso da energia nuclear como arma militar. Num registo diferente, a que talvez possamos chamar romântico, encontramos memórias de filmes como Caso de Vida ou Morte (1946), da dupla Michael Powell/Emeric Pressburger.

Kubrick nasceu nos EUA, é verdade, mas o essencial da sua obra - de Lolita (1962) até De Olhos Bem Fechados (1999) - concretizou-se em estúdios britânicos. Os cenários de Dr. Strangelove foram, aliás, concebidos por Ken Adams, figura marcante do design na produção britânica, celebrizado pelo seu trabalho em vários filmes de James Bond. E não será por acaso que o salão das reuniões da chanceler Vernham com os seus ministros, desde logo através da sua peculiar luz circular, “copia” o espaço em que se reúne o conselho de guerra do filme de Kubrick.

Stephen Frears, também produtor executivo de The Regime e realizador de três dos seis episódios da mini-série (os restantes são assinados pela neozelandesa Jessica Hobbs), ainda que com um começo de carreira ligado a componentes do realismo britânico, tem também na sua filmografia alguns exemplos de derivações mais ou menos sarcásticas sobre as perversões de poder induzidas pelos circuitos mediáticos - recordo o exemplo pouco conhecido (foi um enorme falhanço comercial) de O Herói Acidental (1992), com Dustin Hoffman.

Observem-se, a esse propósito, as cenas emblemáticas das comunicações televisivas de Vernham. A perturbação que se desprende do humor de The Regime envolve uma pergunta didática: e se o exercício do poder político fosse, na sua essência, não a gestão dos problemas de uma comunidade, mas um jogo de imagens e palavras (infinitas imagens, palavras redundantes) sustentado por um dispositivo da mais pura teatralidade?

A pergunta é tanto mais atual quanto nos abre a possibilidade de pensar a televisão para lá (ou antes) de qualquer demonização do meio. Em boa verdade, estamos antes (ou para lá) da discussão das representações do poder em televisão, incluindo qualquer componente panfletária ou de partidarização. É a ambiguidade de tudo isso que está em jogo. A saber: trata-se de reconhecer a televisão como um intrincado labirinto de poderes discursivos e figurativos, numa palavra, narrativos, que determina toda a nossa perceção do mundo.

QOSHE - A política e o seu teatro - João Lopes
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A política e o seu teatro

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24.03.2024

Como vemos a política? Tendo em conta que as “mensagens” e “argumentações” políticas passaram a acontecer quase exclusivamente no espaço televisivo, a pergunta atrai outra, regularmente evitada pela maioria dos elementos das classes política e jornalística: como é que a política nos vê? Eis um verdadeiro tabu da nossa vida cultural, confirmado pela recente campanha eleitoral: à beira dos 50 anos do 25 de abril, todas as forças democráticas escolheram não apresentar programas elaborados de políticas culturais.

Mudemos de assunto. Ou talvez não. Neste tempo em que filmar a política e as suas derivações é uma tarefa encarada como uma “reprodução” pitoresca (lembremos Downton Abbey) ou uma “clonagem” figurativa (The Crown poderá servir de exemplo), a série The Regime (HBO Max) constitui um salutar desafio às convenções dominantes - enfim, não seria grande esforço traduzir para “O Regime”, mas há uma banalização informativa que continua a pontuar a oferta das plataformas virtuais.

A primeira das convenções posta em causa exprime-se........

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