1. Herdeiros que somos da violência prática e simbólica da censura, vivemos agora no interior deste ecumenismo narrativo que a democracia gerou. Democraticamente, claro, com a bênção do triste naturalismo televisivo que quase ninguém arrisca questionar. Como pano de fundo, entende-se que representar o mundo à nossa volta é acumular informações “objectivas” que desembocam quase sempre numa leitura determinista e redentora — tudo acontece para “ilustrar” um sentido das coisas que, afinal, conhecíamos antecipadamente.

2. A política, a história e o quotidiano estão agora codificados pela mesma estreiteza mental que começou por parasitar as artes. Releia-se Susan Sontag: “Hoje vivemos numa época em que o projecto de interpretação é geralmente reaccionário, sufocante. Como o escape do automóvel e da indústria pesada que inquinam a atmosfera urbana, as emanações das interpretações da arte são hoje venenosas para as nossas sensibilidades.” Enfim, as palavras de Sontag são de 1964 (Contra a Interpretação e outros ensaios, ed. Gótica, 2004). Seria simplista transpô-las automaticamente para o nosso presente. Mas há uma questão que se renova: como lidar com as representações que invadem a nossa percepção? Imagens e sons, portanto — sempre.

3. Nos últimos meses, três livros editados em 2023 têm-me ajudado nesta renovada interrogação do que vemos e ouvimos. O primeiro, Habitar o Tempo: Júlio Alves na Maison Cinéma de Pedro Costa (ed. The Stone and the Plot), não será um livro em sentido corrente. Trata-se da edição em DVD de quatro filmes de Júlio Alves — talvez possamos dizer “ensaios videográficos” — que, directa ou indirectamente, percorrem recantos da obra de Pedro Costa, citando Casa de Lava (1994), Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000), Juventude em Marcha (2006), Sweet Exorcist (2012) ou Cavalo Dinheiro (2014). O livro/DVD é apresentado por um texto de Luís Mendonça que, de forma rigorosa e envolvente, sublinha essa condição do cinema como uma forma (de muitas formas) de habitar as casas do nosso viver — atrevo-me a dizer: do nosso “viver mal” e “mal viver”, apropriando-me dos títulos do recente díptico de João Canijo. Aí encontramos a sugestiva memória de um texto de Serge Daney sobre Nicholas Ray (Fúria de Viver, etc.), descrevendo o cinema como uma “casa para imagens”, quer dizer, imagens “que não mais têm um lar”.

4. Daí a sensação (ia a escrever a certeza…) de que o cinema não está condenado a aceitar o primarismo televisivo segundo o qual uma imagem se esgota na reprodução de uma “coisa” transparente e definitiva. O cinema existe como forma de inventariar as casas que habitamos, as que abandonámos e também as que se tornaram inabitáveis — em oposição às casas das telenovelas que não existem a não ser como cenários automáticos e automatizados, sempre iluminados pela mesma luz usada nos noticiários. É também disso que fala o professor e filósofo francês Jacques Rancière numa antologia com um título que relança as imagens e os imaginários das casas: Pedro Costa - Os quartos do cineasta (ed. Relógio D’Água, tradução de Maria João Madeira).

5. Reagindo aos que acusam Pedro Costa de filmar as Fontainhas à procura do “espectáculo da miséria”, Rancière contrapõe a questão humana, por excelência. Ou melhor, a verdade ética e estética de um cinema que não desiste do factor humano: “O quarto de Vanda e as ruelas do bairro em demolição são também o teatro de uma actividade incessante — bricolage de lugares onde viver, venda de salada ou de flores, tráfico de pássaros ou de colheres roubadas —, nem que seja para pagar a dose diária; são o teatro de uma fala que não é simples lamento, mas também debate para saber se a vida é ou não a que escolhemos.”

6. Tudo isto, enfim, suscita as mais diversas questões sobre o que vemos nos inúmeros ecrãs que povoam o nosso mundo (incluindo as nossas casas). Mais do que isso: a “aceleração” das imagens — observem-se os “spots” promocionais das notícias televisivas — tende a promover a ilusão de que a “velocidade” é uma prova de verdade jornalística. Daí o valor pedagógico de um outro trabalho de Luís Mendonça: o livro Majestosa Imobilidade (Edições 70); o seu subtítulo propõe mesmo um regresso às origens do cinema como uma “variação” sobre a quietude da fotografia: “Contributo para uma teoria do fotograma”.

7. De que falamos quando falamos de fotograma? A pergunta justifica-se na sua dimensão mais cândida, já que a nova ideologia televisiva (alheia a tudo o que é imaginação e risco criativo dentro do próprio espaço televisivo) passou a viver no mundo dos “frames”. Aliás, os apóstolos dessa ideologia não sabem que os filmes são… filmados, e não “gravados” (fórmula obscena cúmplice do domínio narrativo das novelas). O livro de Luís Mendonça projecta-nos nessa aventura que as imagens podem conter. Penso, por exemplo, na evocação de Belarmino Fragoso em Belarmino (1964) e Claude Brasseur em O Fio do Horizonte (1993), referindo as suas parecenças com Fernando Lopes, realizador de ambos os filmes. Não haveria maneira mais depurada de lembrar esse poder sem nome, certamente poético, que faz com a vida de uma imagem, na imobilidade do fotograma, possa contrariar o movimento invisível da morte.

QOSHE - As casas em que mal vivemos - João Lopes
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As casas em que mal vivemos

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21.04.2024

1. Herdeiros que somos da violência prática e simbólica da censura, vivemos agora no interior deste ecumenismo narrativo que a democracia gerou. Democraticamente, claro, com a bênção do triste naturalismo televisivo que quase ninguém arrisca questionar. Como pano de fundo, entende-se que representar o mundo à nossa volta é acumular informações “objectivas” que desembocam quase sempre numa leitura determinista e redentora — tudo acontece para “ilustrar” um sentido das coisas que, afinal, conhecíamos antecipadamente.

2. A política, a história e o quotidiano estão agora codificados pela mesma estreiteza mental que começou por parasitar as artes. Releia-se Susan Sontag: “Hoje vivemos numa época em que o projecto de interpretação é geralmente reaccionário, sufocante. Como o escape do automóvel e da indústria pesada que inquinam a atmosfera urbana, as emanações das interpretações da arte são hoje venenosas para as nossas sensibilidades.” Enfim, as palavras de Sontag são de 1964 (Contra a Interpretação e outros ensaios, ed. Gótica, 2004). Seria simplista transpô-las automaticamente para o nosso presente. Mas há uma questão que se renova: como lidar com as representações que invadem a nossa percepção? Imagens e sons, portanto — sempre.

3. Nos últimos meses, três livros editados em 2023 têm-me ajudado........

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