Por estes dias, reencontro palavras dos livros de Philippe Sollers (1936-2023). Por exemplo, a propósito da pintura e dos pintores que mais marcaram o seu mundo e a sua escrita: Monet, Manet, Cézanne… Em Les Folies Françaises, romance de 1988, Sollers contempla Cézanne numa deambulação em que pintura e romance se enlaçam, amorosamente: “Pinto-te, pinto-te, a pintura é um romance, terceiro mundo para lá da realidade e do seu espelho, mais presente do que alguma vez será a consciência da realidade duplicada através de um espelho. É a nossa loucura visível e legível. Música.”

A palavra final, solta, mas precisa, leva-nos a perguntar: que música é esta? Como descrevê-la? Ou ainda: se qualquer descrição padece das limitações da sua própria amostragem das “coisas”, como habitá-la? São palavras reencontradas numa belíssima edição da revista La Règle du Jeu (nº 81, janeiro 2024), dirigida por Bernard-Henri Lévy - um testemunho da longa amizade de Lévy e Sollers e, ao mesmo tempo, uma antologia de textos (assinados, entre outros, por Yann Moix, Nathan Devers e Jean-Paul Enthoven) para nos ajudar a percorrer o território imenso, multifacetado, marcado por uma gravidade radical cúmplice do riso mais livre, de um dos génios da escrita (identificá-lo como “escritor” será sempre pouco) nascidos no século XX.

Ao longo das décadas (Uma Curiosa Solidão, primeiro romance de Sollers, tem data de 1958), Lévy foi um observador atento, empenhado e apaixonado do labor de Sollers. E tanto mais quanto ambos podem ser identificados como protagonistas de um exercício tão vulnerável, quanto fascinante: conhecemo-los como personagens regulares da paisagem mediática, com inevitável destaque para o espaço televisivo; ao mesmo tempo, sempre souberam expor-se nesse espaço resistindo às muitas obscenidades culturais que, em nome da “informação”, tendem a reduzir qualquer desejo de pensamento a coisa fútil e, por fim, dispensável.

Este número de La Règle du Jeu começa, aliás, com uma antologia de extratos de intervenções públicas de Lévy dedicadas a Sollers. No dia 7 de abril de 2000, no seu Bloco de notas da revista Le Point, a propósito da edição do romance Passion Fixe, Lévy condensava num parágrafo admirável a peculiar condição de Sollers como “agente secreto” - aliás, Sollers viria mesmo a publicar um delicioso panfleto autobiográfico intitulado Agent Secret (2021). Citação:

“Philippe Sollers, a sua obra é disso testemunho, teve sempre a obsessão da clandestinidade, das conspirações, dos disfarces, dos lobos. Nunca cedeu contra o desejo, vital, de jogar a sombra contra a luz, de trancar a sua obra e a sua vida - de mobilizar, de facto, os seus livros como outras tantas máquinas da guerra de longa duração que ele quis travar, com alguns outros, contra a monstruosidade do tudo-mostrar e do tudo-dizer.”

Que monstruosidade é esta? As infinitas variações da escrita de Sollers estão em guerra com a mediocridade de um quotidiano gerido pelo voyeurismo do Big Brother (não estamos a falar de Orwell, se é que o leitor faz o favor de me seguir…), antes celebram diferentes maneiras de ver, pensar, sentir e amar em tudo e por tudo alheias à desumanização do nosso mal viver mediático. Na sua alegre brevidade (100 páginas ou menos), os quinze romances finais de Sollers, de L’Étoile des Amants (2002) a Graal (2022) organizam-se mesmo como ecos de um quotidiano cada vez mais maniqueísta, a que a escrita contrapõe lições antigas de diferentes modos de viver e pensar a vida que queremos viver.

Num dos textos de La Règle du Jeu, o professor e crítico literário Olivier Rachet recorda o livro que Sollers escreveu, justamente, sobre Cézanne: Le Paradis de Cézanne (1995). Pertence a esse livro uma máxima que resume exemplarmente a crise da “moral da perceção” em que vivemos e somos obrigados a viver: “Estamos na época em que o homem se separa da sua própria perceção, ou mais exatamente separa-se contra ela.”

Em boa verdade, o próprio Cézanne já nos tinha avisado para tal perigo, chamando-nos a atenção para a música que importa defender, ao citar os frutos das suas naturezas mortas: “Eles ficam ali e pedem desculpa por mudar de cor.”

QOSHE - Memórias do paraíso de Cézanne - João Lopes
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Memórias do paraíso de Cézanne

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10.03.2024

Por estes dias, reencontro palavras dos livros de Philippe Sollers (1936-2023). Por exemplo, a propósito da pintura e dos pintores que mais marcaram o seu mundo e a sua escrita: Monet, Manet, Cézanne… Em Les Folies Françaises, romance de 1988, Sollers contempla Cézanne numa deambulação em que pintura e romance se enlaçam, amorosamente: “Pinto-te, pinto-te, a pintura é um romance, terceiro mundo para lá da realidade e do seu espelho, mais presente do que alguma vez será a consciência da realidade duplicada através de um espelho. É a nossa loucura visível e legível. Música.”

A palavra final, solta, mas precisa, leva-nos a perguntar: que música é esta? Como descrevê-la? Ou ainda: se qualquer descrição padece das limitações da sua própria amostragem das “coisas”, como habitá-la? São palavras reencontradas numa belíssima edição da revista La Règle du Jeu (nº 81, janeiro 2024), dirigida por Bernard-Henri Lévy - um testemunho da longa amizade de Lévy e Sollers e, ao mesmo tempo, uma antologia de textos (assinados, entre outros, por Yann........

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