Na manhã de 22 de março de 2016, em duas localizações distintas de Bruxelas - no Aeroporto Internacional de Zaventem e, minutos depois, numa estação de metropolitano, no coração da capital da União Europeia - membros do ISIL-ISIS-Da’esh desferiram dois ataques terroristas suicidas com recursos a engenhos explosivos (TATP - “a mãe de Satanás”, recorrendo ao jargão jihadista). Desses atentados, quase simultâneos, que paralisaram a Bélgica durante vários dias e chocaram a Europa, resultaram 34 vítimas mortais e centenas de feridos.

Exatamente oito anos depois, no dia 22 de março de 2024, a mesma organização terrorista, por intermédio de um dos seus principais e mais poderosos satélites regionais da atualidade, o “Da’esh na Província de Khorasan” (ISKP), abrangendo conjuntamente áreas do Paquistão e Afeganistão, retomou a ofensiva terrorista em Moscovo, desta feita sem componente suicida.

A internacional terrorista jihadista, com a Al-Qaeda primeiro e o ISIL-ISIS-Da’esh depois, padecem de uma obsessão simbólica pelas datas e pelos números (nem tanto pelas efemérides). A primeira organização, “a base”, mantinha uma fixação no número e no dia 11: atacou, a 11.09.2001, um alvo nos EUA, as duas torres gémeas de Nova Iorque que colocadas reciprocamente, em posição justaposta ou adjacente, configuravam aquele número (11). Cerca de dois anos e meio mais tarde, voltaria a atentar em Madrid, a 11.03.2004 (o 11-M), causando 193 mortos e mais de dois mil feridos, naquele que, na extensão dos danos e volume de vítimas, é até hoje o maior atentado terrorista de sempre, cometido no Velho Continente.

No mesmo mês de março de 2024, em que se celebrou o 20.º aniversário do 11-M, consagrado para a posteridade como o Dia Europeu das Vítimas do Terrorismo, o Da’esh retomou os atentados cometidos por células ou comandos, duplicando o 11 e reincidindo no dia 22, oito anos volvidos sobre a carnificina de Bruxelas.

Não se consumando propriamente no centro nevrálgico do Ocidente, o atentado cometido em Moscovo, a 22.03.24, depois do 11-M em Madrid e do 13-N em Paris (2015), é o mais grave alguma vez perpetrado em solo europeu: 139 mortos e quase duas centenas de feridos, num balanço (ainda) provisório.

Deliberadamente, excluímos desse elenco os magnos atentados terroristas cometidos por separatistas jihadistas chechenos, em Moscovo, que a 23.10.2002 visaram o Teatro Dubrovka - causando 240 mortos e mais de 700 feridos - e outro posterior em 01.09.2004, numa escola de Beslan, na Ossétia do Norte, que se saldou num massacre coletivo com 334 mortos, incluindo 186 crianças.

E qual é o motivo de exclusão desses atentados de 2002 e 2004, desta breve resenha cronológica? Simplesmente porque a maioria das vítimas foram provocadas pela reação das forças de segurança russas, manifestamente desproporcional e esmagadora - e não pelos agentes do terrorismo. Sem contemplações, prudência, nem misericórdia. Passando o eventual pleonasmo, as autoridades de Moscovo responderam ao terrorismo e aos terroristas com mais terrorismo (de Estado), ao arrepio dos mais elementares princípios do Estado de Direito, penalizando duplamente as vítimas, indiferentes à preservação da sua integridade física e da vida. De tal sorte que, muitos anos depois, em 2017, referindo-se ao massacre na Escola de Beslan, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, condenou o Governo da Federação Russa, pelo desproporcionado e excessivo recurso à força letal, numa grosseira violação dos Direitos Humanos e do inalienável Direito à vida.

Retomando o atentado do ISKP em Moscovo a 22.03.24, descontando o despudorado aproveitamento político do Kremlin, tentando desvalorizar a evidência da responsabilidade jihadista para alavancar a escalada da ofensiva militar contra a Ucrânia, a Rússia terá acrescidas razões de preocupação.

Além das questões civilizacionais e religiosas que separam o ISKP - ou o ISIL-ISIS-Da’esh considerado no seu todo - do regime vigente na Federação da Rússia, prevalece ainda algum ressentimento em razão da presença soviética no Afeganistão (1979-1989), seguida da implacável repressão das tendências separatistas islamistas nas províncias do Cáucaso (sul da Rússia) que culminariam na tentativa de afirmação do Emirado do Cáucaso - que chegou a ser proclamado na Chechénia em 2007 -, mas que terminou com a eliminação física do seu líder e putativo emir, em setembro de 2013. O capital de queixa do ISKP contra a Federação Russa ampliou-se ainda mais perante o apoio concedido pelo Governo de Moscovo ao regime Sírio, no combate ao ISIL-ISIS-Da’esh.

Junte-se a circunstância de os países da Ásia Central, sobretudo o Uzbequistão e Tajiquistão, onde o jihadismo fervilha e mobiliza, servirem de travão e fronteira face aos riscos imediatos que procedem do eixo afegano-paquistanês (AF-PAK), mas em simultâneo constituírem via de acesso privilegiado ao território da Rússia. Formado em 2015, na região historicamente descrita como a Província de Khorasan, em pleno apogeu do protocalifado erigido pelo ISIL-ISIS-Da’esh na Síria e Iraque, o ISKP, enquanto satélite regional, integrou na origem dissidentes desiludidos do Tehrik-Taliban-Pakistan (o TTP ou os talibãs paquistaneses) e do Movimento Islâmico do Uzbequistão. Reforçou-se, sobretudo a partir de março de 2019, com a adesão de combatentes que sobreviveram ou escaparam à prisão, após o colapso final do projeto de califado, marcado pela queda do derradeiro bastião de Baghouz, na Síria.

Desde então, o ISKP multiplicou os atentados, sobretudo no Afeganistão - desafiando os talibãs que ali retomaram o poder em agosto de 2021 -, mas também no Paquistão. No início deste ano, terá apostado na internacionalização da ação terrorista, ainda que a uma escala meramente regional e de evidente proximidade, visando o Irão (atentado em Kerman, fez 84 mortos e cerca de 300 feridos) e agora a Rússia.

Os atentados em Bruxelas a 22.03.16, foram dos últimos registados na Europa cometidos por comandos do ISIL-ISIS-Da’esh. Seguiram-se os sucessivos ataques na Catalunha, a 17 e 18.08.17, por um grupo alargado de jihadistas. Em Bruxelas e na Catalunha, os dois grupos eram integralmente formados por jovens de origem ou nacionalidade marroquina. Daí em diante, antes e depois da pandemia covid-19 - que determinou confinamentos e fortes restrições à mobilidade, requisitos de que os agentes do terrorismo não podem prescindir - assistimos à afirmação dos atores solitários: aqueles que atuam por sua própria iniciativa, conta e risco, sem obedecerem a instruções de cadeias de comando, de qualquer organização ou estrutura terrorista.

Assistiremos doravante a uma mudança de perfil na atuação do ISIL-ISIS- Da’esh e satélites (incluindo o ISKP) na Europa, regressando aos comandos industriados em lugar dos atores solitários?... Na verdade, ambos podem coincidir ou coexistir, na ação e no tempo. Ressurgindo as células, com maior capacidade operativa e letal, e composição mais alargada, mas sem prejuízo nem detrimento para a continuidade dos chamados lone wolves.

O ISIS-ISIL-Da’esh é hoje uma organização terrorista mais sombria e menos visível, mas permanece como referência e bandeira icónica global. Com a débâcle do autoproclamado califado na Síria e Iraque, perdeu fulgor, pujança e capacidade de mobilização operacional à distância. Mas continua a dispor do concurso de grupos “franchisados” em várias latitudes, do Magreb ao Sahel, da África Ocidental a Moçambique, e do AF-PAK ao Sudoeste Asiático.

A ameaça corporizada pelo ISKP poderá superar uma lógica regional, mas no futuro imediato não deverá escalar muito além da base da organização terrorista no AF-PAK, mesmo atingindo países próximos ou mais ou menos limítrofes. Quanto mais não seja por razões básicas de distância, acessibilidade, logística, capacidade de movimentação e penetração.

Sem que se esperem consequências imediatas e tangíveis para a Europa no seu conjunto - menos ainda para Portugal e não apenas em razão da geografia -, este atentado em Moscovo contribuirá para o agravamento da incerteza, da ameaça latente e da crispação geral no clima de (in)segurança internacional. Como se não bastasse já a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia - sem fim, nem solução que se vislumbre no horizonte médio - e o conflito que se arrasta há um semestre no Médio Oriente, com a imparável ofensiva genocida sobre Gaza.

Sendo certo que, como sempre sublinhámos, o risco zero inexiste, sem alarmismos supérfluos, é fundamental manter a atenção e a vigilância.

A situação dos países europeus face ao terrorismo jihadista internacional não é uniforme e os riscos são variáveis na sua intensidade. Ontem mesmo, França - que teve o seu próprio nine-eleven a 13 de novembro de 2015 em Paris e é, a considerável distância de qualquer (infeliz) concorrência, o país ocidental mais visado pelo terrorismo de inspiração jihadista nos últimos 30 anos - elevou ao nível máximo de alerta o seu plano nacional de prevenção “Vigipirate”.

Acrescer o nível da ameaça, corresponde a um expediente formal, meramente indicativo e programático que não terá substância, aplicação, nem consequências práticas, se não for acompanhado por um esforço proativo e de vigilância permanente, pelas forças e serviços de segurança e pela sociedade civil em geral.

A prevenção persistirá, como palavra-chave.

QOSHE - Os atentados em Moscovo: terrorismo regional ou o ressurgimento do Da’esh na Europa? - João Ventura
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Os atentados em Moscovo: terrorismo regional ou o ressurgimento do Da’esh na Europa?

27 0
27.03.2024

Na manhã de 22 de março de 2016, em duas localizações distintas de Bruxelas - no Aeroporto Internacional de Zaventem e, minutos depois, numa estação de metropolitano, no coração da capital da União Europeia - membros do ISIL-ISIS-Da’esh desferiram dois ataques terroristas suicidas com recursos a engenhos explosivos (TATP - “a mãe de Satanás”, recorrendo ao jargão jihadista). Desses atentados, quase simultâneos, que paralisaram a Bélgica durante vários dias e chocaram a Europa, resultaram 34 vítimas mortais e centenas de feridos.

Exatamente oito anos depois, no dia 22 de março de 2024, a mesma organização terrorista, por intermédio de um dos seus principais e mais poderosos satélites regionais da atualidade, o “Da’esh na Província de Khorasan” (ISKP), abrangendo conjuntamente áreas do Paquistão e Afeganistão, retomou a ofensiva terrorista em Moscovo, desta feita sem componente suicida.

A internacional terrorista jihadista, com a Al-Qaeda primeiro e o ISIL-ISIS-Da’esh depois, padecem de uma obsessão simbólica pelas datas e pelos números (nem tanto pelas efemérides). A primeira organização, “a base”, mantinha uma fixação no número e no dia 11: atacou, a 11.09.2001, um alvo nos EUA, as duas torres gémeas de Nova Iorque que colocadas reciprocamente, em posição justaposta ou adjacente, configuravam aquele número (11). Cerca de dois anos e meio mais tarde, voltaria a atentar em Madrid, a 11.03.2004 (o 11-M), causando 193 mortos e mais de dois mil feridos, naquele que, na extensão dos danos e volume de vítimas, é até hoje o maior atentado terrorista de sempre, cometido no Velho Continente.

No mesmo mês de março de 2024, em que se celebrou o 20.º aniversário do 11-M, consagrado para a posteridade como o Dia Europeu das Vítimas do Terrorismo, o Da’esh retomou os atentados cometidos por células ou comandos, duplicando o 11 e reincidindo no dia 22, oito anos volvidos sobre a carnificina de Bruxelas.

Não se consumando propriamente no centro nevrálgico do Ocidente, o atentado cometido em Moscovo, a 22.03.24, depois do 11-M em Madrid e do 13-N em Paris (2015), é o mais grave alguma vez perpetrado em solo europeu: 139 mortos e quase duas centenas de feridos, num balanço (ainda) provisório.

Deliberadamente, excluímos desse elenco os magnos atentados terroristas cometidos por separatistas jihadistas chechenos,........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play