Não é o absurdo que impressiona, mas a tentativa de normalizar do absurdo. Com as suas decisões, três procuradores da República deitaram abaixo um governo, dissolveram a Assembleia da República e convocaram novas eleições. E o que é absolutamente extraordinário é que o país se comporte, duas semanas depois, como se nada de incomum tivesse ocorrido. Que admirável poder este, o de transformar em normal a situação mais incomum. Na verdade, reconheçamo-lo, é o jornalismo que decide o que é ou não é escândalo porque só ele tem poderes para criar escandalizados e, como sabemos, não há escândalo sem escandalizados. No final, dizem eles, criticar o Ministério Público é "atacar a justiça". Toda a crítica é blasfémia.

Isto quanto ao jornalismo. Quanto à política, esta parece globalmente empenhada em seguir em frente, marchando em ordem unida e tentando regularizar o que nada tem de regular. A oposição, com óbvio interesse na crise, desenvolve a sua ação dizendo que se fechou um ciclo. Como esse ciclo se encerrou, se de forma legitima ou ilegítima, parece não vir ao caso. Quanto ao senhor Presidente da República, que há muito esperava uma oportunidade, nem acredita no pretexto que lhe caiu do céu para fazer, sem custos, o que há muito desejava fazer. Todavia, a conduta mais extravagante, o comportamento mais surpreendente, é o do próprio Partido Socialista que, sendo o alvo designado da operação, se comporta como a vítima perfeita - nada de contestação, nada de protestos. É tudo normal e é tudo aceitável, ainda que ontem tivesse maioria absoluta no Parlamento e hoje tenha umas eleições para disputar. Dois dias depois da renúncia, o partido tem já o primeiro candidato ao lugar e, uns dias depois, apresenta-se o segundo. Não há tempo a perder. O líder que parte não tem sequer direito a velório. Uma semana depois dos acontecimentos, a notícia não é a demissão do governo, mas a disputa da liderança que ficou vaga.

E, no entanto, a operação não parece ter corrido bem. Apesar do esforço da política e do jornalismo para normalizar o que se passou, as primeiras sondagens mostram desconfiança. O costumeiro aplauso às buscas e às prisões não foi unânime como costumava ser e a famigerada proclamação de confiança na justiça também já não é o que era. Desta vez não houve juízas a escrever nas suas redes sociais que "Há dias perfeitos. Hihihihi". Pelo contrário, no jornalismo e na política apareceram uns quantos recalcitrantes. A crítica ao que aconteceu foi maior que o esperado. Não, não correu bem. E, no entanto, bem vistas as coisas, o falhanço da operação ficou a dever-se a um detalhe, um pequeno detalhe que constitui a mais importante regra do manual de lawfare - escolher cuidadosamente o juiz. Há nove anos, na operação marquês, vigarizaram a escolha do juiz e transformaram todo o inquérito num jogo de cartas marcadas (não, não é um ponto de vista, é uma decisão já transitada em julgado). Desta vez o processo desabou imediatamente porque o juiz não foi escolhido de forma fraudulenta e se comportou como estando acima das partes. Arbitro: acima das partes. No final, azar dos Távoras (metáfora muito actual), o juiz conclui que não há indícios que sustentem a legitimidade da ação contra as pessoas. A diferença que faz um juiz.

Pior, ainda, a corporação parece que perdeu a cabeça. Uma procuradora destemida resolveu escrever o que pensa, enfrentando o poder sindical que há muito domina a instituição e reivindicando o regresso à ordem constitucional. Sabe do que fala e sabe o que diz. A causa é simples, o prestígio da instituição reside na estrita defesa da legalidade democrática e no respeito das garantias constitucionais. Está dito e estando dito, soa como um novo acorde que tem o efeito de tudo aquilo que se ouve pela primeira vez. A partir de agora, nada pode apagar o gesto. Alguém disse que a pior face do estalinismo é a perseguição à dissidência e também aqui, neste mundo judiciário tão habituado ao mando e à obediência, toda a discordância é herética. A resposta ao artigo é a violência - um inquérito é imediatamente instaurado contra a desobediente. Há momentos em que os aparelhos se tornam absolutamente ridículos.

Enquanto isto, o Partido Socialista prossegue a sua campanha interna. Nada de distração com o processo judicial. Nada de desvios de atenção. Nada de debater as buscas por motivos fúteis ou as detenções abusivas. Nada de discutir os limites do poder estatal ou as garantias constitucionais. O Partido Socialista não tem tempo para discutir a liberdade. Há muito que ali deixou de existir a estética da rotura. O Partido Socialista é uma vítima bem-comportada. O Partido Socialista é uma vítima respeitosa. O Partido Socialista é a vítima perfeita.

Ericeira, 26 de novembro de 2023

QOSHE - A vítima perfeita - José Sócrates
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A vítima perfeita

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27.11.2023

Não é o absurdo que impressiona, mas a tentativa de normalizar do absurdo. Com as suas decisões, três procuradores da República deitaram abaixo um governo, dissolveram a Assembleia da República e convocaram novas eleições. E o que é absolutamente extraordinário é que o país se comporte, duas semanas depois, como se nada de incomum tivesse ocorrido. Que admirável poder este, o de transformar em normal a situação mais incomum. Na verdade, reconheçamo-lo, é o jornalismo que decide o que é ou não é escândalo porque só ele tem poderes para criar escandalizados e, como sabemos, não há escândalo sem escandalizados. No final, dizem eles, criticar o Ministério Público é "atacar a justiça". Toda a crítica é blasfémia.

Isto quanto ao jornalismo. Quanto à política, esta parece globalmente empenhada em seguir em frente, marchando em ordem unida e tentando regularizar o que nada tem de regular. A oposição, com óbvio interesse na crise, desenvolve a sua ação dizendo que se fechou um ciclo. Como esse ciclo se encerrou, se de forma legitima ou ilegítima, parece não vir ao caso. Quanto ao senhor Presidente da República, que há muito esperava uma oportunidade, nem acredita no pretexto que lhe........

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