Veio a terça-feira, depois a quarta, e por aí fora. Há uma semana que o Partido Socialista é massacrado diariamente nas televisões, sendo apresentado como um partido dirigido por gente desonesta. Desta vez a ação do Ministério Público derrubou um Governo, acabou com uma maioria absoluta e dissolveu a Assembleia da República. Em apenas quatro horas a vontade popular livremente expressa nas urnas foi substituída pela decisão de realizar novas eleições. E, no entanto, o conselho dos estrategas do partido é que a luta é contra a direita, não contra o sistema judiciário. A caminho do cadafalso, os lábios dos socialistas entoam cânticos de confiança na Justiça. Esplêndido.

Mas desta vez há debate. Pelo menos há debate. Os procuradores expressam, apressadamente, o argumento de que todas as suspeitas têm de ser investigadas. Princípio da legalidade, dizem eles - investigar todas as suspeitas. E, no entanto, não é nada disso que está em causa. A investigação existe há quatro anos e ninguém protestou contra ela. O que está em causa são os motivos para prender, para fazer buscas e para tornar públicas suspeitas que, podendo fundamentar a decisão de investigar, não justificam a violência sobre as pessoas. Isso, sim, é o que está em causa.

E, depois, o tempo. O ponto crítico nesta história é o tempo. Quando o Ministério Público decide prender, fazer buscas em casas particulares e tornar pública uma investigação, deve ter já na sua posse provas que considere suficientes da culpabilidade dos envolvidos. Deve estar pronto para acusar. Pois bem, não está. Todos sabemos que esta investigação vai durar anos, que os suspeitos vão pedir a aceleração processual, que os prazos de inquérito não vão ser cumpridos e que os procuradores manterão os suspeitos devidamente presos na prisão da opinião pública durante o tempo necessário a que outro tempo político floresça.

Ainda assim, os socialistas acham que não podem passar os próximos quatro meses a discutir um processo judicial, mesmo que esse processo, esse processo em concreto, lhes tenha retirado ilegitimamente a maioria absoluta no Parlamento e o direito a governar. E, talvez mais importante, mesmo que esse processo tenha detido cinco pessoas por motivos fúteis e arruinado a sua reputação pública. Parece que a declaração de princípios do PS ainda "considera primaciais a defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos (...)." Todavia, agora não há tempo para discutir a Constituição ou as garantias constitucionais. Os socialistas não têm tempo para discutir a liberdade. A armadilha mental da direita resulta em pleno - criticar os abusos do Ministério Público é "atacar a Justiça", dizem eles. Quanto aos socialistas, não querem perder tempo, Nem quatro meses, nem quatro dias, nem quatro horas. Alguém disse que "todos os que se calam são dispépticos". Sim, este silêncio faz mal ao estômago.

Parece que nos processos de Moscovo, os condenados, já encostados à parede e prontos para enfrentar o fuzilamento, ainda gritavam viva Estaline. Aqui, nesta democracia, o Ministério Público presta contas a Deus, não aos homens, que se devem limitar a baixar a cabeça e expressar a sua confiança na Justiça. Daqui a quatro meses haverá novo governo, haverá novos escândalos e haverá novas oportunidades para dizer que confiamos na Justiça. Nada de novo debaixo do sol - apenas a Justiça a funcionar.

Ericeira, 14 de Novembro de 2023

Antigo primeiro-ministro e principal arguido na Operação Marquês

QOSHE - Nada como um dia depois do outro - José Sócrates
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Nada como um dia depois do outro

9 31
15.11.2023

Veio a terça-feira, depois a quarta, e por aí fora. Há uma semana que o Partido Socialista é massacrado diariamente nas televisões, sendo apresentado como um partido dirigido por gente desonesta. Desta vez a ação do Ministério Público derrubou um Governo, acabou com uma maioria absoluta e dissolveu a Assembleia da República. Em apenas quatro horas a vontade popular livremente expressa nas urnas foi substituída pela decisão de realizar novas eleições. E, no entanto, o conselho dos estrategas do partido é que a luta é contra a direita, não contra o sistema judiciário. A caminho do cadafalso, os lábios dos socialistas entoam cânticos de confiança na Justiça. Esplêndido.

Mas desta vez há debate. Pelo menos há debate. Os procuradores expressam, apressadamente, o argumento de que todas as suspeitas têm de ser investigadas. Princípio da legalidade, dizem eles -........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play