Tenho uma relação complicada com o Nobel da Literatura. Tirando em 1998 a óbvia exceção Saramago, em que livros e pátria se confundiram, a minha reação ao nome anunciado todos os outubros como vencedor varia entre o “porque demorou tanto?”, que aplico a Naipaul, Vargas Llosa ou Pamuk, e o “tenho de ler este”, que recordo ter pensado ainda há três anos quando ganhou o tanzaniano Gurnah. Na verdade, há uma terceira reação, “nunca li nada dele. Ou dela”. É a pior de todas. Quase uma não-reação, pois passa pelo assumir da ignorância e simultaneamente pela falta de vontade de ultrapassá-la. Aconteceu no ano passado quando Fosse, Jon Fosse, foi anunciado como o novo Nobel. Estupidez minha, confesso.

Felizmente uma ida com a minha filha a uma livraria na manhã do último sábado acabou comigo a trazer Manhã e Noite no mesmo saco onde pus O Homicídio Perfeito - Um guia para boas raparigas, que espero à altura das expectativas de uma menina de 13 anos. Li o livro de Fosse de rajada.

Confesso que são poucas páginas, talvez o mais pequeno dos romances dele expostos na Bertrand das Amoreiras, creio que todos editados pela Cavalo de Ferro, do grupo Penguin. Mas prendeu-me do princípio ao fim e, aliás, o livro do norueguês é mesmo sobre isso: o princípio e o fim. Sobre o nascimento e a morte.

Tudo começa numa ilha. E o mar está lá sempre. Sem mar não se pode compreender o que vai ser Johannes, nem o que foi Johannes. Só visitei uma vez a Noruega, mas senti que li um livro norueguês. Não que tenha muita experiência de livros escritos por noruegueses. O último que li, de que me lembro bem, foi Pan, de Knut Hamsun, um dos quatro Nobéis da Literatura que aquela nação, a pátria de Ibsen, tem. Que a principal Academia Nobel seja em Estocolmo, na vizinha Suécia, ajuda a esse sucesso, tal como ajuda que a outra Academia Nobel, a do prémio da Paz, seja em Oslo. Ou, vejamos de outra maneira, talvez mais justa: sem o legado de Alfred Nobel, sueco que viveu no tempo em que Suécia e Noruega tinham o mesmo rei, que melhor marketing teria a literatura nórdica antes do fenómeno sueco Stieg Larsson?

Fosse. Parece estranho em português, quando se vê escrito o nome. Mas imaginemos como aquelas letras soam em norueguês e já se torna mais aceitável. De qualquer forma não é importante isso, importante é o que escreve. E a forma como escreve. Ao escolhê-lo a Academia Nobel disse querer distinguir “uma prosa inovadora que dá voz ao indizível”. Não tenho a certeza de compreender a ideia, mas a frase tem sido repetida em todos os recentes artigos sobre Fosse. Tal como repetem a referência à sua “espiritualidade”. Quero crer que quem conhece bem a obra percebeu logo a Academia. A mim falta ainda fazer muito caminho, mas confesso-me entusiasmado. Não me vou pôr aqui a enumerar títulos, até porque são muitos. Há quem me diga que deveria ler também outros dois grandes escritores noruegueses, Jo Nesbo e Karl Ove Knausgard, mas calma. Prioridade a Fosse, que quase me fez chorar com aquela personagem do pescador em Manhã e Noite. Com a simplicidade extrema - só aparente - da sua escrita. Aqui no DN, Maria João Martins, citou há cinco meses, na notícia do prémio, uma antiga entrevista ao Le Monde em que o norueguês disse: “Não escrevo sobre personagens no sentido tradicional da palavra. Escrevo sobre a Humanidade.” Daí a tal simplicidade?

Tenho um filho e uma filha. Daniel e Mariana. Gostam ambos de livros. Por insistência dela, a mais nova, fui naquela manhã àquele que nasceu há 40 anos como o primeiro centro comercial a sério de Lisboa. De Portugal todo. E assim cruzei-me com Fosse nos escaparates. Estava em grande destaque. Trilogia, claro, também volumes da Septologia.

Leio agora um pouco da biografia deste homem de 64 anos. Tem seis filhos. É impossível dizer que não sabe o que é ser pai. Achei tão bonito, no Manhã e Noite, o que Signe, a mais nova dos filhos de Johannes, pensa quando se despede: “Eras tão especial, meu querido Johannes, eras sim, meu querido pai, eras excêntrico e estranho, mas também bom.” Se espiritualidade é comover-me com isto, sou um místico.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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“Excêntrico e estranho, mas também bom”

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08.02.2024

Tenho uma relação complicada com o Nobel da Literatura. Tirando em 1998 a óbvia exceção Saramago, em que livros e pátria se confundiram, a minha reação ao nome anunciado todos os outubros como vencedor varia entre o “porque demorou tanto?”, que aplico a Naipaul, Vargas Llosa ou Pamuk, e o “tenho de ler este”, que recordo ter pensado ainda há três anos quando ganhou o tanzaniano Gurnah. Na verdade, há uma terceira reação, “nunca li nada dele. Ou dela”. É a pior de todas. Quase uma não-reação, pois passa pelo assumir da ignorância e simultaneamente pela falta de vontade de ultrapassá-la. Aconteceu no ano passado quando Fosse, Jon Fosse, foi anunciado como o novo Nobel. Estupidez minha, confesso.

Felizmente uma ida com a minha filha a uma livraria na manhã do último sábado acabou comigo a trazer Manhã e Noite no mesmo saco onde pus O Homicídio Perfeito - Um guia para boas raparigas, que espero à altura das expectativas de uma menina de 13 anos. Li o livro de Fosse de rajada.

Confesso que são poucas páginas, talvez o mais........

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