Meio milénio depois da sua morte, o português Fernão de Magalhães é descrito como "um violento colonialista" pela astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que defende que as duas galáxias-satélites anãs da nossa Via Láctea batizadas em nome do navegador passem a ter outro nome. Foi o jornal britânico The Guardian quem ontem deu a notícia, mas a ofensiva da professora Reyes contra Magalhães (ou Magellan, ou Magallanes, como também é conhecido mundo fora) surgiu antes num artigo na publicação especializada APS Physics, no qual é feito um apelo à União Astronómica Internacional - a entidade que nomeia os corpos celestes - para renomear as Nuvens de Magalhães (a Grande e a Pequena). E a cientista salienta falar em nome de muitos astrónomos que "acreditam que nem os objetos, nem as instalações astronómicas devem ser nomeadas em honra de Magalhães, nem de qualquer outro com um legado colonialista violento". No debate entra também a questão dos nomes que os povos do Hemisfério Sul davam aos corpos celestes antes da chegada dos europeus.

O próprio The Guardian lança questões pertinentes sobre a lógica por trás da proposta da astrónoma: o telescópio gigante baseado no Chile (e o outro a caminho) que se chama Magellan tem de ser renomeado? E como chamar ao Pacífico, batizado pelo português quando ao serviço da coroa espanhola saiu da passagem que liga o Atlântico ao maior dos oceanos? E já agora, acrescenta o jornal, o Chile terá de dar outro nome ao célebre Estreito de Magalhães?

Magalhães, navegador que conheceu os mares do Oriente ao serviço de Portugal e depois, por zanga com D. Manuel I, ofereceu os serviços a Carlos V, foi morto nas Filipinas, quando se envolveu numa guerra local. Foi o espanhol Juan Sebastian Elcano quem terminou a viagem, avançando para Ocidente pelo chamado "mar português" (assim definido pelo Tratado de Tordesilhas entre as coroas ibéricas) e completando em 1522 uma circum-navegação inédita, que não estava programada sequer pelo monarca espanhol.

O objetivo de Magalhães era atingir as ilhas das especiarias navegando por uma rota alternativa à do Cabo da Boa Esperança, ou seja por "mar espanhol". Entre 1519 e 1521, foi o seu conhecimento, a sua determinação e a sua liderança que permitiram à expedição navegar por mar desconhecido entre o Rio da Prata e as Filipinas, ou seja metade da circunferência da Terra. "É graças a Magalhães que conhecemos a Terra tal como ela é", afirmou-me em tempos, numa entrevista, o historiador José Manuel Garcia, autor da biografia Fernão de Magalhães - Herói, Traidor ou Mito: a história do primeiro homem a abraçar o mundo.

O americano Laurence Bergreen, autor do sucesso de vendas global intitulado Over the Edge of the World: Magellan"s Terrifying Circumnavigation of the Globe (publicado em Portugal como Fernão de Magalhães - Para Além do Fim do Mundo), falou-me talvez ainda com mais entusiasmo sobre o navegador do século XVI, pelo menos com uma admiração que certamente não pode ser vista como nacionalista. Numa conversa em Nova Iorque, Bergreen surpreendeu-me quando contou que foi durante uma investigação para um livro sobre a história da NASA que começou a pensar em escrever sobre Magalhães. A razão: cada vez que começava a falar com um cientista da agência espacial americana vinha à baila o nome do navegador português como inspirador, pelo seu espírito de aventura, mas igualmente pelo conhecimento científico em que baseou o planeamento de toda a expedição.

Há aqui, pois, um grande mistério para mim: grandes cientistas como James Garvin, da NASA, são capazes de olhar para Magalhães como um homem da sua época e dizer isto: "Magalhães era o que, na minha área, chamaríamos um grande engenheiro de missão aeroespacial. Ele encontrou uma forma de ir a sítios difíceis. Hoje temos esses homens e mulheres a liderar as nossas missões a Marte, de volta à Lua, para construir excelentes telescópios, estudar a Terra e o Sol. Portanto, penso que os mesmos elementos de base estão lá". Já a astrónoma Reyes vê apenas um "colonialista violento".

Diretor interino do Diário de Notícias

QOSHE - Agora querem cancelar Magalhães  - Leonídio Paulo Ferreira
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

Agora querem cancelar Magalhães 

5 13
13.11.2023

Meio milénio depois da sua morte, o português Fernão de Magalhães é descrito como "um violento colonialista" pela astrónoma Mia de los Reyes, do Amherst College no Massachusetts, que defende que as duas galáxias-satélites anãs da nossa Via Láctea batizadas em nome do navegador passem a ter outro nome. Foi o jornal britânico The Guardian quem ontem deu a notícia, mas a ofensiva da professora Reyes contra Magalhães (ou Magellan, ou Magallanes, como também é conhecido mundo fora) surgiu antes num artigo na publicação especializada APS Physics, no qual é feito um apelo à União Astronómica Internacional - a entidade que nomeia os corpos celestes - para renomear as Nuvens de Magalhães (a Grande e a Pequena). E a cientista salienta falar em nome de muitos astrónomos que "acreditam que nem os objetos, nem as instalações astronómicas devem ser nomeadas em honra de Magalhães, nem de qualquer outro com um legado colonialista violento". No debate entra também a questão dos nomes que os povos do Hemisfério Sul davam aos corpos........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play