Vou começar a falar de Taiwan relembrando a deliciosa cena de dez mulheres sentadas a uma mesa a ouvir música, rindo enquanto bebem chá e vinho, uma pintura em seda com 1300/1400 anos. Peça das mais preciosas no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, é tão frágil quando exposta à luz que sei a grande sorte que tive em tê-la visto numa das minhas visitas à ilha. Costuma estar guardada.

Não se sabe o autor, mas este Concerto no Palácio está datado da Dinastia Tang, que governou a China entre os séculos VII e X. Nessa época longínqua, Taiwan era habitada por tribos aborígenes, algumas das quais ainda existem, representando uns 3% da população de 24 milhões. Só a partir do século XVII começou a chegada de chineses em grande número, oriundos das províncias costeiras do sul. Em 1949/1950, a retirada do Governo nacionalista de Chiang Kai-shek para a ilha trouxe mais dois milhões de pessoas, desde altos-funcionários a meros soldados, oriunda esta gente de toda a China.

Se relembro estes episódios da chegada dos chineses a Taiwan, ilha tão luxuriante de vegetação que os navegadores portugueses a batizaram de Formosa, é por serem essenciais para entender o que são hoje os taiwaneses, dos quais falamos quase só quando fazem eleições, como a que há dias elegeu William Lai para presidente, ou quando a China faz demonstrações de poder militar.

A história taiwanesa pode ser sintetizada em cinco grandes períodos: até ao século XVII, muito periférica em relação ao Império Chinês, ao ponto de os espanhóis e holandeses lá se terem instalado brevemente; séculos XVII a XIX, de último bastião dos Ming a parte do Império sob os Qing; 1895-1945, colonização japonesa, com tentativa de japonização; 1945-1996, reintegração na República da China e, depois, último reduto desta, quando o Kuomintang de Chiang é derrotado pelos comunistas de Mao Tsé-tung, que proclamam a República Popular da China; desde 1996, democratização, acompanhada de um novo sentimento identitário, com a maioria da população a dizer-se primeiro taiwanesa, e o Kuomintang, fiel ao ideal de uma só China, a ser batido em eleições pelo partido independentista, que, no entanto, não desafia o statu quo, receoso de uma invasão chinesa apesar do compromisso americano com a defesa de Taiwan.

Volto à pintura da era Tang, num museu onde estão os tesouros que Chiang trouxe da Cidade Proibida em Pequim, para confessar o quanto me senti na China quando estive em Taiwan. Conheço Pequim, também já visitei Hong Kong e Macau, e reconheço estar no mesmo ambiente cultural quando passeio pelas ruas de Taipé e visito templos e mercados ou me sento num restaurante a comprovar a fama da gastronomia da ilha, que faz a fusão de toda a China, ou não convivesse ali gente com origens tão distantes como a Manchúria e outras, oriundas da vizinha Fujian, logo do outro lado do estreito, onde não falta quem imagine que pode começar uma Terceira Guerra Mundial.

Numa das reportagens em Taiwan conheci um jornalista escandinavo, visitante habitual, que me confessou que sentia ali maior continuidade com a História chinesa do que no continente. Até os ideogramas, dizia, continuam a ser os tradicionais e não a versão simplificada que o PC Chinês instituiu. Acrescentava que a ilha ser uma democracia podia servir de inspiração além estreito.

Costuma dizer-se que as reformas económicas de Deng Xiaoping foram inspiradas por Hong Kong, colónia britânica até 1997. Mas nunca esquecer o papel dos empresários taiwaneses no desenvolvimento da economia chinesa, mesmo numa época em que as relações entre os dois lados do estreito eram mínimas. Ainda hoje, e apesar de todas as tensões, as empresas taiwanesas beneficiam do gigantismo da China para os seus lucros, com é o caso da Foxconn, que se instalou em 1988 em Shenzen, uma das zonas económicas especiais de Deng, e produz em várias fábricas na China os produtos da americana Apple, numa ode à globalização.

De certa forma, foram os exemplos do dinamismo de Taiwan (e de Hong Kong) que, depois do fim do fervor revolucionário, inspiraram a ascensão da China. Há meio século valia 2% da riqueza mundial, agora representa quase 20%. O tradicional espírito empresarial chinês, que Mao combateu, sobreviveu nos territórios que escapavam ao controlo de Pequim, e foi decisivo quando o PC decidiu, segundo a famosa máxima de Deng, que afinal “não importa a cor do gato desde que cace ratos”, liberalizando assim a economia (mas não o sistema político).

Decidido a reunificar a China, Deng abriu , porém, mão do monopólio do poder político pelo PC em Hong Kong e Macau (Portugal saiu em 1999) e esperou que Taiwan, um dia, também aderisse à ideia de Um País, Dois Sistemas. Talvez entre 2008 e 2016, último período em que o Kuomintang teve a presidência, tal até fosse uma perspetiva a médio prazo, sendo certo que os taiwaneses exigiriam sempre, do ponto de vista negocial, muito mais do que as duas ex-colónias, certamente até uma espécie de paridade, ou não fosse a República da China mais antiga do que a República Popular da China e reconhecida como representante do povo chinês pela ONU até 1971. Mas como se não bastasse o crescimento do independentismo taiwanês, também a forma como Pequim tem apertado o controlo sobre Hong Kong não ajuda nada à popularidade da solução Um País, Dois Sistemas. O presidente Xi Jinping, se quiser uma reunificação pacífica, terá de ser imaginativo.

Ora, imaginativos é aquilo que têm sido os taiwaneses, sobretudo desde que puseram fim à ditadura deixada por Chiang. Imaginativos politicamente (a maioria recusa a independência formal, preferindo o statu quo que dura desde 1949); imaginativos socialmente (único país da Ásia a reconhecer o casamento homossexual) e imaginativos economicamente (produzem mais de 50% dos semicondutores a nível mundial, outro travão a uma ação de força pela China).

Falei já da belíssima pintura da era Tang, mas talvez diga mais sobre Taiwan (e sobre a China) o Kavalan, whisky vencedor de várias provas cegas, incluindo com concorrentes escoceses, e que está à venda em mais de 60 países. Nasceu da iniciativa de um empresário taiwanês que viu como, de um lado e do outro do estreito, o consumo de whisky aumentava a velocidade superior à do número de novos ricos, lembrou-se da água cristalina da Montanha de Jade e suas irmãs, chamou um especialista britânico e desafiou-o a criar um produto local de qualidade. O sucesso dos whiskies japoneses serviu de inspiração, e quando finalmente se conseguiu o resultado desejado, nada de camuflar a origem, pelo contrário, pois Kavalan é o nome de uma tribo aborígene de Taiwan e o formato das garrafas inspira-se no Taipé 101.

Brindemos, pois, com Kavalan à paz no estreito de Taiwan, conscientes de que os legados de Mao e Chiang já pouco dizem às pessoas e que um entendimento em família é sempre possível. E pensemos nos sorrisos das senhoras chinesas de há 1300/1400 anos que parecem sentir-se tão em casa em Taipé como se sentiam em Pequim quando faziam parte do tesouro imperial.



Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Brindar à paz com Kavalan - Leonídio Paulo Ferreira
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Brindar à paz com Kavalan

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18.01.2024

Vou começar a falar de Taiwan relembrando a deliciosa cena de dez mulheres sentadas a uma mesa a ouvir música, rindo enquanto bebem chá e vinho, uma pintura em seda com 1300/1400 anos. Peça das mais preciosas no Museu do Palácio Nacional, em Taipé, é tão frágil quando exposta à luz que sei a grande sorte que tive em tê-la visto numa das minhas visitas à ilha. Costuma estar guardada.

Não se sabe o autor, mas este Concerto no Palácio está datado da Dinastia Tang, que governou a China entre os séculos VII e X. Nessa época longínqua, Taiwan era habitada por tribos aborígenes, algumas das quais ainda existem, representando uns 3% da população de 24 milhões. Só a partir do século XVII começou a chegada de chineses em grande número, oriundos das províncias costeiras do sul. Em 1949/1950, a retirada do Governo nacionalista de Chiang Kai-shek para a ilha trouxe mais dois milhões de pessoas, desde altos-funcionários a meros soldados, oriunda esta gente de toda a China.

Se relembro estes episódios da chegada dos chineses a Taiwan, ilha tão luxuriante de vegetação que os navegadores portugueses a batizaram de Formosa, é por serem essenciais para entender o que são hoje os taiwaneses, dos quais falamos quase só quando fazem eleições, como a que há dias elegeu William Lai para presidente, ou quando a China faz demonstrações de poder militar.

A história taiwanesa pode ser sintetizada em cinco grandes períodos: até ao século XVII, muito periférica em relação ao Império Chinês, ao ponto de os espanhóis e holandeses lá se terem instalado brevemente; séculos XVII a XIX, de último bastião dos Ming a parte do Império sob os Qing; 1895-1945, colonização japonesa, com tentativa de japonização; 1945-1996, reintegração na República da China e, depois, último........

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