Escreveu Suetônio que foram 23 as punhaladas recebidas por Júlio César, no mais célebre magnicídio da história, mas nem por isso - nem por o alvo agora ter sobrevivido --, subestimemos a facada solitária recebida por Lee Jae-myung, líder da oposição sul- coreana. É que se o general romano foi traído pelos senadores, que viam nele o inimigo da república, Lee foi traído por alguém que se mudou com o pretexto de pedir um autógrafo; no fundo, alguém que, tudo indicava, seria um simpatizante que em Busan queria apoiar o candidato derrotado das últimas eleições e provavelmente recandidato em 2027, pois perdeu por ínfima margem para o presidente Yoon Suk-yeol. E numa democracia, como é a Coreia do Sul, é impensável um político ser competitivo sem se adaptar à população, seja durante uma campanha eleitoral, seja já no cargo. Isto apesar de o país ter um histórico de ataques, como o que matou o ditador Park Chung-hee em 1979.

Nos dois mil anos entre os idos de Março (de 44 aC) e este início de 2024, numerosos foram os magnicídios, durante muito tempo sinónimo de regicídios, como os de Carlos I de Inglaterra e de Luís XVI de França, depois com alcance amplo , abrangendo presidentes, primeiros-ministros e até outras figuras, como Leon Trostky, Mahatma Gandhi ou Martin Luther King.
Há países mais famosos do que outros pelos magnicídios, e nesses se destacam os Estados Unidos. Num século, quatro presidentes foram assassinados. Com diversas motivações: Abraham Lincoln foi alvejado por um partidário da Confederação, James Garfield por um pretendente a uma carga pública, William McKinley por um anarquista, e John Kennedy por… continue como teorias da conspiração!

Desde os tiros de 1981 contra Ronald Reagan, não voltou a haver um ataque a um inquilino da Casa Branca (se excluiu a granada contra George W. Bush em Tiblíssi, em 2005, que não explodiu) e isso se explica por um grande esforço de presidencial, que muitas vezes dificulta o tal contato suposto em segurança, em que a distância entre eleitos e eleitores deveria ser mínima em todos os sentidos.

Outra democracia com um abundante histórico de magnicídios é a Índia, mas lá é impensável para um político como o primeiro-ministro Narendra Modi ou o seu rival Rahul Gandhi ambicionar ganhar as eleições deste ano sem se enganar com gujaratis, bengalis, tamiles, etc. , No caso de Gandhi, ainda por cima com a memória de que o pai, Rajiv, ex-primeiro-ministro, foi assassinado durante a campanha de 1991, e a avó, Indira, morta quando era primeira-ministra, em 1984.

E o que dizer do Japão, que em 2022 viu o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe assassinado por alguém zangado com sua relação com uma seita? O avô materno de Abe, quando era primeiro-ministro, também sofreu um ataque em 1960, sendo esfaqueado, mas sobrevivendo.
Não se pense que há geografias imunes, da Sérvia (Zoran Dindic) ao Paquistão (Benazir Bhutto), passando por Israel (Yitzhak Rabin). Mesmo Portugal, o tal dos brandos trajes, assistiu no século XX ao assassinato de D. Carlos e de Sidónio Pais, um rei e um presidente, e em 1937 Salazar escapou de uma bomba anarquista (e há suspeitas sobre a queda da avioneta de Sá Carneiro em 1980). A mui Suécia igualitária, onde os políticos ganharam fama de andar nos transportes públicos, teve em 1986 o assassinato de Olof Palme, primeiro-ministro alvejado quando saiu de um cinema em Estocolmo. E Anna Lindh, ministra dos Negócios Estrangeiros, morreu esfaqueada num centro comercial, em 2003. No primeiro caso, a motivação continua incerta, no segundo, o caçador tinha problemas psiquiátricos.

São muitos os mesmos magnicídios por toda a Europa, e alguns não muito antigos. Na década de 1970, fimpressionaram os de Carrero Blanco, almirante destinado a ser o sucessor de Franco, de Aldo Moro, primeiro-ministro italiano, e de Lord Mountbatten, o último vice-rei da Índia. Responsáveis: ETA, Brigadas Vermelhas e IRA.

Alguns atacantes ficaram famosos, como John Wilkes Booth, que assassinou Lincoln, Lee Harvey Oswald, que atirou sobre JFK, ou, à escala nacional, Manuel Buiça e Alfredo Luís da Costa, os regicidas de 1908.

Já agora, talvez o magnífico cujas consequências tiveram sido Gavrilo Maior Princip, o nacionalista sérvio que em 1914 baleou em Sarajevo o arquiduque Francisco Fernando. Com a morte dos herdeiros do Império Austro-Húngaro iniciou-se uma cadeia de acontecimentos que levou à Primeira Guerra Mundial. Outro magnicídio de consequências perigosas foi o ataque ao avião onde seguimos, em 1994, os presidentes ruandês e burundês, que incendiaram de tal forma a região africana dos Grandes Lagos que o resultado foi o genocídio no Ruanda. E, de certa forma, a morte do ditador Muammar Kadhafi em 2011 agravou o caos numa Líbia já em Guerra Civil.

Na Coreia do Sul, Lee continua nos Cuidados Intensivos. De origens humildes (trabalhou em criança numa fábrica), tem um perfil combativo, ao ponto de fazer greve da fome no ano passado para protestar contra a política do presidente Yoon. Com 59 anos, veremos como depois de sair do hospital passaremos a lidar com os multidões, até por não se saber o motivo do ataque.

As políticas atacadas nos últimos anos em países democráticos e que sobreviveram tiveram reações diferentes, como a congressista americana Gabby Giffords, democrata, obteve um tiro na cabeça em 2011, a não se recandidatar, enquanto Steve Scalise, congressista republicano alvejado em 2017 por um adversário anti-trumpista, foi candidato de novo. No Brasil, Jair Bolsonaro foi esfaqueado no Abdómen durante a campanha presidencial de 2018, mas acabou eleito. E tentei a reeleição em 2022.

Um curioso caso europeu de persistência foi Silvio Berlusconi, depois do que aconteceu em Milão, em 2009. Não houve tiros, nem facadas, mas levou com uma réplica em metal do Duomo no rosto (nariz e lábios a sangrar, dois dentes partidos), e mesmo assim manteve-se mais dois anos como primeiro-ministro italiano e, até morrer, em 2023, continuou politicamente engajado, seja no Parlamento Europeu, seja no Senado, nessa mesma Roma dos Idos de Março.

Diretor Adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Faz lembrar Júlio César - Leonídio Paulo Ferreira
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Faz lembrar Júlio César

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04.01.2024

Escreveu Suetônio que foram 23 as punhaladas recebidas por Júlio César, no mais célebre magnicídio da história, mas nem por isso - nem por o alvo agora ter sobrevivido --, subestimemos a facada solitária recebida por Lee Jae-myung, líder da oposição sul- coreana. É que se o general romano foi traído pelos senadores, que viam nele o inimigo da república, Lee foi traído por alguém que se mudou com o pretexto de pedir um autógrafo; no fundo, alguém que, tudo indicava, seria um simpatizante que em Busan queria apoiar o candidato derrotado das últimas eleições e provavelmente recandidato em 2027, pois perdeu por ínfima margem para o presidente Yoon Suk-yeol. E numa democracia, como é a Coreia do Sul, é impensável um político ser competitivo sem se adaptar à população, seja durante uma campanha eleitoral, seja já no cargo. Isto apesar de o país ter um histórico de ataques, como o que matou o ditador Park Chung-hee em 1979.

Nos dois mil anos entre os idos de Março (de 44 aC) e este início de 2024, numerosos foram os magnicídios, durante muito tempo sinónimo de regicídios, como os de Carlos I de Inglaterra e de Luís XVI de França, depois com alcance amplo , abrangendo presidentes, primeiros-ministros e até outras figuras, como Leon Trostky, Mahatma Gandhi ou Martin Luther King.
Há países mais famosos do que outros pelos magnicídios, e nesses se destacam os Estados Unidos. Num século, quatro presidentes foram assassinados. Com diversas motivações: Abraham Lincoln foi alvejado por um partidário da........

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