Islam também é nome de nacionalista galês” foi o título de uma reportagem que publiquei no DN em 2010, durante a campanha eleitoral britânica. O conservador David Cameron acabou então por ser eleito primeiro-ministro, mas em Gales confirmou-se a força dos trabalhistas, partido mais votado naquele que é um dos quatro países do Reino Unido. E apesar do Plaid Cymru, o partido nacionalista galês, ter também enviado três representantes para o Parlamento de Westminster, em Londres, Mohammed Islam, candidato por Cardiff Oeste, não foi um deles.

Nascido no Bangladesh, o consultor de vendas acreditava que a sua adesão ao nacionalismo somado à forte comunidade muçulmana a viver nessa parte da capital galesa podia ser a fórmula para garantir a eleição, mas não teve hipótese contra o rival trabalhista, candidato de um partido tradicionalmente também habituado a falar para as minorias.

Ora, na época, apesar do meu interesse pelo papel do voto étnico na política britânica, passou-me despercebido um político galês que vai agora fazer história como, e cito o Guardian, “o primeiro líder negro de uma nação europeia”.

Recém-eleito chefe dos trabalhistas galeses, Vaughan Gething substituiu ontem Mark Drakeford como primeiro-ministro desse recanto celta do Reino Unido, quatro vezes mais pequeno que Portugal e com cerca de três milhões de habitantes. Em 2010, quando estive em reportagem em Cardiff, Gething era vereador, ponto de partida para uma carreira brilhante que o levou a deputado, depois ministro e agora chefe do Governo, cargo que lhe confere amplos poderes, apesar de ser em Londres que está o principal centro de decisão político britânico.

Com 50 anos acabados de fazer (15 de março), Gething nasceu na Zâmbia, depois de o pai, um veterinário galês, se ter casado com uma zambiana criadora de galinhas que conheceu quando trabalhava na África Austral. Em entrevistas, o político tem descrito o pai como “um emigrante económico galês branco” a tentar ganhar a vida num país africano de língua inglesa. Também contou como a família sofreu racismo quando procuraram instalar-se no País de Gales, tinha então Gething 2 anos. Um emprego terá sido prometido ao pai numa quinta, com possibilidade de trazer esposa e filhos, mas a oferta foi retirada ao verem chegar “a mulher e as crianças castanhas”, nas palavras do novo primeiro-ministro galês. A alternativa para o veterinário foi um emprego em Inglaterra, o maior dos países do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, monarquia constitucional encabeçada hoje pelo rei Carlos III.

Foi, porém, no País de Gales, terra da família paterna, que Gething fez a universidade. E o jurista, que também é sindicalista, começou a fazer história quando se tornou o primeiro negro presidente da União dos Estudantes Galeses. Um dia contou que foi ao ler sobre Nelson Mandela e a luta por uma África do Sul multirracial que se decidiu pela aventura na política. E embora na realidade seja mulato (tal como Barack Obama o é, filho de um queniano e de uma americana branca do Kansas), a imagem pública de Gething é a de um negro, que é como, aliás, se assume, e também o descreve a imprensa.

O mais extraordinário, a somar à original história de vida de Gething, é que a sua chegada à chefia do Governo galês acontece num momento em que o primeiro-ministro escocês é Humza Yousaf, nacionalista nascido em 1985 em Glasgow, mas com raízes no Paquistão, e o próprio primeiro-ministro britânico é o conservador Rishi Sunak, nascido em Southampton, mas com antepassados indianos, apesar de os seus pais terem vindo da África Oriental, um legado da era colonial, quando o Império Britânico tinha fama de ser tão grande que, nele, o Sol nunca se punha. Na verdade, o primeiro império onde o Sol nunca se punha até terá sido o português, e logo no século XVI, pois ao Brasil se somavam os territórios na África e na Ásia e ainda Timor, ilha tão próxima da Austrália que quase pertence à Oceânia.

Nisto de antigos impérios coloniais, talvez o britânico se distinga mais pela sua relativa, e discreta, perpetuação através da Commonwealth, com Isabel II e agora Carlos III ainda monarcas de países tão distantes como a Austrália, o Canadá ou a Jamaica. Também se distingue o Reino Unido, apesar da vontade do próprio Sunak de combater a imigração ilegal, pela aparente grande capacidade de integração dos imigrantes e seus filhos, aceitando mais facilmente a exibição pública das diferenças culturais do que, por exemplo, a França, que as rejeita em nome da igualdade republicana.

Um quinto dos 67 milhões de britânicos pertence a minorias étnicas e religiosas, sejam africanos ou asiáticos, muçulmanos ou hindus. E essa diversidade que já se nota há muito no desporto e nas artes, também nos negócios, chegou em força à política, e Gething é um excelente exemplo, como o são igualmente Yousaf ou Sunak. Há aqui alguma lição britânica para o resto da Europa aprender?


Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Filhos do Império - Leonídio Paulo Ferreira
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Filhos do Império

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21.03.2024

Islam também é nome de nacionalista galês” foi o título de uma reportagem que publiquei no DN em 2010, durante a campanha eleitoral britânica. O conservador David Cameron acabou então por ser eleito primeiro-ministro, mas em Gales confirmou-se a força dos trabalhistas, partido mais votado naquele que é um dos quatro países do Reino Unido. E apesar do Plaid Cymru, o partido nacionalista galês, ter também enviado três representantes para o Parlamento de Westminster, em Londres, Mohammed Islam, candidato por Cardiff Oeste, não foi um deles.

Nascido no Bangladesh, o consultor de vendas acreditava que a sua adesão ao nacionalismo somado à forte comunidade muçulmana a viver nessa parte da capital galesa podia ser a fórmula para garantir a eleição, mas não teve hipótese contra o rival trabalhista, candidato de um partido tradicionalmente também habituado a falar para as minorias.

Ora, na época, apesar do meu interesse pelo papel do voto étnico na política britânica, passou-me despercebido um político galês que vai agora fazer história como, e cito o Guardian, “o primeiro líder negro de uma nação europeia”.

Recém-eleito chefe dos trabalhistas galeses, Vaughan Gething substituiu ontem Mark Drakeford como primeiro-ministro........

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