Ía num táxi da estação de comboios para o hotel em Nagasáqui quando o meu parceiro de viagem, um japonês, me apontou uma loja especializada em kasutera, ou castella, o bolo típico da cidade. Não resisti a fazer ali uma paragem. Oportunidade para provar o meu primeiro castella, o famoso doce a lembrar o pão de ló, um dos muitos legados da presença portuguesa no Japão nos séculos XVI e XVII, sobretudo naquela cidade do sul, ainda hoje uma espécie de capital cristã do país. Gostei do castella, mas gostei ainda mais da receção que me foi dada pelo dono da pastelaria, da festa que fez por acolher um português. Quase de certeza, o título da minha reportagem no DN, que resultou de três dias em Nagasáqui e arredores, foi muito influenciado por aquele primeiro momento caloroso: Em Nagasáqui, é boa a memória de Portugal, e não só entre cristãos.

Este ano celebraram-se os 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão. À pequena iIlha de Tanegashima. Não se sabe grande coisa desses pioneiros, tirando os nomes (António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto) e que eram mercadores. E esse é um pormenor essencial para entender a relação entre os japoneses e os portugueses. Ali, ao contrário do que aconteceu na Índia, até mesmo na China, não houve verdadeiramente um Portugal imperial, mas sim um Portugal mercantil. Não houve ideias de conquista, mas de comércio. E, a partir de certa altura, também de evangelização, com um notável sucesso, muito por obra dos jesuítas.

Ora, sobre os portugueses no Japão e sobre o Japão muitos autores têm escrito, desde Fernão Mendes Pinto, que na Peregrinação até reivindica ter sido o primeiro a desembarcar no arquipélago, a David Lopes, que viveu e trabalhou lá e publicou agora Uma Varanda Sobre Tóquio, confessando um fascínio que também sentiram Wenceslau de Moraes, Franco Nogueira, Armando Martins Janeira e tantos outros. Mas um novo livro sobressai pelo que nos ensina sobre o País do Sol Nascente. Falo de Nanban-Jin: Os Portugueses no Japão, de Luís Filipe F. R. Thomaz, editado este ano pela Gradiva. Tem como base dois textos com algumas décadas e que já na sua época tinham impressionado, pela profundidade dos conhecimentos do autor e pela sua capacidade de análise, tanto da presença portuguesa no Japão, como em geral da expansão na Ásia, lançada cientificamente por D. João II, concretizada aventurosamente por D. Manuel I e prosseguida pragmaticamente por D. João III, que era quem reinava quando dois misteriosos Antónios, mais um Francisco, puseram pé em Tanegashima em 1543.

Conta Luís Filipe F. R. Thomaz que duas décadas depois do primeiro contacto luso-nipónico o dáimio de Cangoxima, em carta ao provincial dos jesuítas em Goa, afirmava que, "depois que o mundo é mundo, não vimos tal gente como são os portugueses". Ao contrário dos chineses, que ao longo dos tempos foram recebendo ocasionais visitantes europeus (dos emissários do Império Romano a Marco Polo), os japoneses viram pela primeira vez um europeu quando se depararam com os portugueses. E foi um dupla descoberta. Por um lado, os portugueses viram aquilo que nem Marco Polo viu (ele, que falou de um Cipango a oriente do Cataio), por outro os japoneses tomaram conhecimento do resto do mundo, desde a tecnologia da espingarda, até à medicina ocidental, passando pelos mapa-múndi. De Nagasáqui partiu a primeira embaixada japonesa à Europa, ainda no século XVI, que visitou Lisboa, Madrid (onde estava Filipe II, já então rei de Portugal) e Roma.

O prefácio de Namban-Jin: Os Portugueses no Japão é assinado por João Paulo Oliveira e Costa, reputadíssimo historiador, sobretudo no que diz respeito à expansão na Ásia. Conta, a certa altura, que apesar de nos chamarem de "bárbaros do Sul", os japoneses tiveram perfeita consciência de como, graças aos portugueses, a sua visão do mundo mudou. Antes de 1543, o mundo além fronteiras era chamado de sankoku (três países); depois passou a ser bankoku (dez mil países). Que a dada alturas, finda a Guerra Civil, os novos senhores do Japão se tenham voltado violentamente contra os portugueses, sobretudo os xóguns da família Tokugawa (desconfiados da lealdade dos cristãos japoneses e dos seus amigos estrangeiros), não apagou essa memória de descoberta mútua, que ficou de múltiplas formas, por exemplo em palavras, como o nosso "copo" que se japonizou, ou o "sacana" deles que entre nós deixou de ser peixe e passou a ofensa.

Na altura em que visitei Nagasáqui estava a ser exibido o filme Silêncio, de Martin Scorsese. Retrata a perseguição aos cristãos, e o fecho do Japão aos europeus, com exceção dos holandeses, confinados à Ilha de Dejima e comprometidos a negociar, mas não a converter, o que, como bons calvinistas, aceitaram. O filme baseia-se no livro homónimo do japonês Susaku Endo, cristão indignado com as bombas atómicas, a segunda das quais atingiu Nagasáqui, matando muitos dos cristãos que tinham recuperado a velha fé depois de as famílias terem vivido séculos escondidas. A explosão de agosto de 1945 destruiu muito da cidade, mas não os vestígios físicos da presença portuguesa. Esses já tinham desaparecido há muito, como a primeira igreja, Shuntokuji ou "Dos Santos", construída numa colina, onde hoje existe um templo budista, com o bonzo Hirano a mostrar-me no jardim os escassos vestígios do passado cristão, como uma pedra de mármore que terá pertencido ao altar.

O extraordinário livro de Luís Filipe F. R. Thomaz elucida-nos sobre o século português no Japão (1543-1639), também sobre tudo aquilo que o antecedeu em termos de expansão, sobretudo o espírito de Cruzada que levou D. Manuel I a encomendar a Afonso de Albuquerque um ataque a Meca, o que ajuda a perceber o quão diferente foi, de facto, a relação luso-nipónica.

Visitante do Japão desde os tempos em que preparava o doutoramento, João Paulo Oliveira e Costa, no já citado prefácio, afirma estar certo "de que nenhum outro povo estrangeiro tem tantas homenagens públicas espalhadas pelo território do Japão como os portugueses" e dá o exemplo de "um escorrega para crianças com a forma da nau do trato, num parque em Kuchinotsu, na Península de Shimabara, construído já neste século XXI". Atrevo-me a acrescentar, à sua maneira, a loja de castella, chamada Bunmeido Hontem.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Nanban-jin - Leonídio Paulo Ferreira
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Nanban-jin

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28.12.2023

Ía num táxi da estação de comboios para o hotel em Nagasáqui quando o meu parceiro de viagem, um japonês, me apontou uma loja especializada em kasutera, ou castella, o bolo típico da cidade. Não resisti a fazer ali uma paragem. Oportunidade para provar o meu primeiro castella, o famoso doce a lembrar o pão de ló, um dos muitos legados da presença portuguesa no Japão nos séculos XVI e XVII, sobretudo naquela cidade do sul, ainda hoje uma espécie de capital cristã do país. Gostei do castella, mas gostei ainda mais da receção que me foi dada pelo dono da pastelaria, da festa que fez por acolher um português. Quase de certeza, o título da minha reportagem no DN, que resultou de três dias em Nagasáqui e arredores, foi muito influenciado por aquele primeiro momento caloroso: Em Nagasáqui, é boa a memória de Portugal, e não só entre cristãos.

Este ano celebraram-se os 480 anos da chegada dos portugueses ao Japão. À pequena iIlha de Tanegashima. Não se sabe grande coisa desses pioneiros, tirando os nomes (António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto) e que eram mercadores. E esse é um pormenor essencial para entender a relação entre os japoneses e os portugueses. Ali, ao contrário do que aconteceu na Índia, até mesmo na China, não houve verdadeiramente um Portugal imperial, mas sim um Portugal mercantil. Não houve ideias de conquista, mas de comércio. E, a partir de certa altura, também de evangelização, com um notável sucesso, muito por obra dos jesuítas.

Ora, sobre os portugueses no Japão e sobre o Japão muitos autores têm escrito,........

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