Quem conhece As Cruzadas Vistas Pelos Árabes ou Samarcanda sabe bem como os livros de Amin Maalouf são fascinantes, sejam ensaios, sejam romances históricos. A mais recente obra do escritor franco-libanês, publicada agora em Portugal pela Marcador com o título O Labirinto dos Perdidos, trata da história dos três últimos países que tentaram desafiar o domínio do Ocidente, que vem do século XV, quando Vasco da Gama descobriu o Caminho Marítimo para a Índia e mudou a História do Mundo, mas sobretudo impôs-se nos últimos 200 anos. É um livro que fala de choque de culturas, de guerra e de competição ideológica e económica, e explica-nos muito sobre o Japão, a Rússia e a China. Mas a dado momento, por entre imperadores e generais, príncipes e revolucionários, surge a figura de Matteo Ricci, um jesuíta italiano, a quem Maalouf não poupa elogios, no sentido oposto exatamente ao tema do livro, que é o confronto: “Estou convencido de que a vida e a obra de Matteo Ricci representam a tentativa mais ambiciosa jamais feita por um homem para reunir e reconciliar as grandes civilizações do mundo.”

Acrescenta logo Maalouf que “é claro que a sua atitude não era representativa do comportamento e da mentalidade dos seus contemporâneos. Infelizmente, nem toda a gente tinha os mesmos pontos de vista elevados”. A crítica é tanto aos europeus como aos chineses, no caso os que viveram na segunda metade do século XVI e início do século XVII, que foi a época de Ricci (Macerata, 1552 - Pequim, 1610).

Para mim, desde leituras de juventude, Ricci era sobretudo o autor de um dicionário de Português-Chinês, o primeiro dicionário alguma vez feito entre uma língua europeia e o chinês. Fiquei a conhecer mais profundamente o jesuíta graças à italiana Michela Fontana, autora em 2005 de uma excelente biografia do seu compatriota, intitulada Matteo Ricci - Un gesuita alla corte dei Ming, que li na tradução francesa. E entendo perfeitamente o que Maalouf quer dizer quando fala do missionário como conciliador de mundos que em tudo pareciam condenados a ser opostos.

O dicionário de Ricci ser Português-Chinês e não Italiano-Chinês não deve surpreender, pois a Santa Sé entregou a Portugal a organização e financiamento das missões nos territórios ultramarinos da Coroa e também na China e no Japão. O português não só funcionava como língua franca do comércio na Ásia como era o idioma falado por muitos jesuítas e, sobretudo, entre os jesuítas vindos da Europa e os discípulos que começavam a ser formados no Oriente.

Ricci, que se formou na Universidade de Roma, “La Sapienza”, estudou depois em Coimbra, e os conhecimentos de português foram aperfeiçoados em Goa, Cochim e finalmente Macau. Percurso semelhante ao de Francisco Xavier, missionário na China e no Japão. Numa reportagem que fiz há uns anos em Nagasáqui, Renzo de Luca, jesuíta argentino na Igreja de São Filipe, junto ao Memorial aos 26 Mártires, mostrou-me uma carta escrita em português pelo santo navarro que morreu na China e está sepultado em Goa, capital da antiga Índia Portuguesa.

Foi através de cristãos chineses que sabiam português que os jesuítas aprenderam a língua do Império do Meio. Macau, desde 1557 cidade mercantil onde a Dinastia Ming tolerava a presença portuguesa, servia de base para essa experiência de levar o Evangelho aos chineses. O Colégio de São Paulo foi ali fundado por Alessandro Valignano, outro italiano decisivo nos anos iniciais da Companhia de Jesus. Ao longo das décadas, muitos foram os ajudantes de Ricci, desde logo o também italiano Michelle Ruggieri, coautor do célebre dicionário. Ambos são considerados como os pioneiros entre os sinólogos, graças ao conhecimento que adquiriram da civilização chinesa. Ruggieri acabou por regressar à Europa, mas Ricci nunca mais deixaria a China.

Maalouf, com raízes no Médio Oriente, sempre mostrou uma sensibilidade especial para escrever sobre os momentos em que as civilizações se cruzam. Ele próprio, libanês e francês, também árabe-cristão, é um homem entre dois mundos. Aquilo que o faz admirar Ricci é o italiano ter procurado “construir pontes”, estudando a história e cultura chinesas. E ao contrário do que fizeram os jesuítas no Japão, uma estratégia de conversão maciça que chegou às centenas de milhares de batizados, na China a opção foi converter os mais educados, os mandarins. Para tal Ricci chegou a referir-se a Deus como Tianzhu, que pode ser traduzido como “senhor do céu”, um esforço para entrar na mentalidade chinesa, considerando que a cultura confucionista não era incompatível com o cristianismo. Em Roma, houve quem não gostasse de tanto compromisso, tanta cautela, e sobretudo de uma tão lenta progressão nos números de convertidos, uns poucos milhares.

Cada vez mais fluente no chinês, ao ponto de ter escrito nessa língua livros ainda hoje admiráveis e ter traduzido clássicos gregos, Ricci passou a dada altura igualmente a vestir-se como os filhos da terra. E foi obtendo autorizações sucessivas para se ir fixando cada vez mais a norte, sempre com o objetivo de chegar a Pequim, onde estava o imperador. Recordo-me de na biografia escrita por Fontana sobressair, a par das conversas filosóficas com os mandarins, a oferta de relógios e de modelos astronómicos como modo de impressionar os chineses com a ciência europeia, apesar de estes serem convictos da superioridade da sua cultura. Também me recordo da impressão muito positiva que Ricci causou com o seu mapa-múndi, feito em 1602 com ajuda de um letrado chinês, uma oferta ao imperador Wanli (já agora, a Gradiva lançou no ano passado a interessante novela gráfica Matteo Ricci: Na Cidade Proibida).

Quando morreu, o jesuíta italiano era tão respeitado pelos chineses que pôde ser sepultado em Pequim, ao contrário do que era a norma para os estrangeiros, levados para serem enterrados em Macau. O túmulo pode ainda hoje ser visitado na capital chinesa, onde existem algumas igrejas apesar da complicada relação entre o Vaticano e a República Popular da China (chegou-se até a falar do Padroado Português como inspiração para uma fórmula que conciliasse a vontade chinesa de controlar o clero nacional e a tradição papal de nomear os bispos).

Pouco antes da morte, Ricci tinha tido a certeza de que o país onde vivia era o Cataio descrito por Marco Polo. Apesar de os portugueses terem chegado por mar à China em 1513, não foi imediata a relação entre o que viam e o país descrito pelo mercador italiano que o visitou no século XIII. Ainda há quem lance dúvidas sobre a autenticidade do relato de Polo sobre as viagens, sempre estranhando que este não mencione a Grande Muralha, mas no que diz respeito à identificação do Cataio com a China, a dificuldade inicial é compreensível: os portugueses chegaram à China do Sul, semitropical, e numa era em que reinavam os Ming, dinastia chinesa; Polo viveu quase duas décadas sobretudo na China do Norte e relatou a governação da Dinastia Yuan, criada por um neto do mongol Gengis Khan. Ora, a certeza de que Cataio e China eram um só país chegou a Ricci via informação do português Bento de Goes, também jesuíta, que partiu da Índia, cruzou a Ásia Central e chegou a Gansu, província ocidental chinesa, com mercadores muçulmanos a confirmarem que Cataio era a China e Cambalique correspondia a Pequim. Para os chineses, até hoje, Ricci é Li Ma-teu, mas em vida chegaram a chamá-lo Mestre do Grande Ocidente. Gente extraordinária.


Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - O extraordinário Matteo Ricci - Leonídio Paulo Ferreira
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O extraordinário Matteo Ricci

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07.03.2024

Quem conhece As Cruzadas Vistas Pelos Árabes ou Samarcanda sabe bem como os livros de Amin Maalouf são fascinantes, sejam ensaios, sejam romances históricos. A mais recente obra do escritor franco-libanês, publicada agora em Portugal pela Marcador com o título O Labirinto dos Perdidos, trata da história dos três últimos países que tentaram desafiar o domínio do Ocidente, que vem do século XV, quando Vasco da Gama descobriu o Caminho Marítimo para a Índia e mudou a História do Mundo, mas sobretudo impôs-se nos últimos 200 anos. É um livro que fala de choque de culturas, de guerra e de competição ideológica e económica, e explica-nos muito sobre o Japão, a Rússia e a China. Mas a dado momento, por entre imperadores e generais, príncipes e revolucionários, surge a figura de Matteo Ricci, um jesuíta italiano, a quem Maalouf não poupa elogios, no sentido oposto exatamente ao tema do livro, que é o confronto: “Estou convencido de que a vida e a obra de Matteo Ricci representam a tentativa mais ambiciosa jamais feita por um homem para reunir e reconciliar as grandes civilizações do mundo.”

Acrescenta logo Maalouf que “é claro que a sua atitude não era representativa do comportamento e da mentalidade dos seus contemporâneos. Infelizmente, nem toda a gente tinha os mesmos pontos de vista elevados”. A crítica é tanto aos europeus como aos chineses, no caso os que viveram na segunda metade do século XVI e início do século XVII, que foi a época de Ricci (Macerata, 1552 - Pequim, 1610).

Para mim, desde leituras de juventude, Ricci era sobretudo o autor de um dicionário de Português-Chinês, o primeiro dicionário alguma vez feito entre uma língua europeia e o chinês. Fiquei a conhecer mais profundamente o jesuíta graças à italiana Michela Fontana, autora em 2005 de uma excelente biografia do seu compatriota, intitulada Matteo Ricci - Un........

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