Quem se recorda do vídeo da frágil figura prestes a ser enforcada no penúltimo dia de 2006, ou do homem de cabelo e barba desgrenhadas descoberto três anos antes num buraco, dificilmente associará Saddam Hussein à ideia de um vencedor, menos ainda de um conquistador, mas era assim que o líder iraquiano se via até à invasão americana de março de 2003. Vencedor, ou conquistador, diz-se Al Mansur em árabe. E daí o nome do antigo iate do ditador, que nos últimos dias tem sido notícia por, mesmo afundado, se ter transformado em atração turística.

De Al Mansur, já agora, vem também o Almançor que surge na história da Reconquista, o grande guerreiro muçulmano que por volta do ano 1000 assolou os reinos cristãos da Península Ibérica, ao ponto de atacar uma cidade tão a norte como Santiago de Compostela. Sabe-se, aliás, que Saddam, embora laico, estudava a História do Islão e, sem dúvida, conhecia as façanhas de Almançor, talvez a última exibição de força do Califado de Córdova, o célebre Al Andalus.

O Al Mansur naufragado no Shatt al-Arab, rio formado pela confluência do Tigre e do Eufrates, era o maior dos iates de Saddam. Uma reportagem da CNN revelou que o barco, de 121 metros de comprimento, está ao abandono perto de Baçorá, a grande cidade portuária do Sul do Iraque. Foi uma espécie de vítima colateral da guerra que em 2003 pôs fim a décadas de poder absoluto do filho de camponeses de Tikrit que ascendeu ao topo do Estado graças à influência de um primo e ao zelo revolucionário.

As armas de destruição maciça que justificaram a invasão ordenada por George W. Bush nunca apareceram, mas nem por isso a queda da ditadura iraquiana deve ser lamentada. O homem que se via como um novo califa de Bagdad nunca se cansou, ao longo dos anos, de atacar os vizinhos, fosse o Irão ou Israel, e em 1990 chegou mesmo a invadir e anexar o Koweit, conquista efémera, pois George Bush, o primeiro da família Bush na Casa Branca, liderou uma coligação internacional que obrigou, em inícios de 1991, as tropas iraquianas a retirar.

Saddam era também brutal com o seu povo e, apoiando-se na minoria árabe sunita, oprimia os árabes xiitas e, sobretudo, os curdos, que chegaram a ser atacados com armas químicas nos Anos 1980, o que mais tarde ajudou a credibilizar as tais acusações americanas sobre a posse de armas de destruição maciça.

À queda de Saddam seguiu-se o caos, com insurreição, terrorismo e separatismo. E a grande acusação que se faz aos Estados Unidos é não terem acautelado o futuro do Iraque, que chegou a ter uma das suas maiores cidades, Mossul, tomada pelos jihadistas do Daesh.

Ora, se o iate Al Mansur foi vítima das bombas de 2003 e das pilhagens que aconteceram na hora do vazio de poder, muitas outras posses de Saddam também foram destruídas. Estive em reportagem no Iraque em vésperas da queda de Saddam, mas nunca tive hipótese de o ver. Contudo, bastou-me uma cerimónia onde o vice-presidente Izzat Ibrahim al-Duri chegou numa imponente limusina para perceber que a liderança do Partido Baas, laico e pan-arabistas, gostava de belos carros. Saddam teria uma coleção que incluía Rolls Royces e Cadillacs blindados, e o filho Udai, apontado como potencial sucessor, tinha fama de acumular Porsches e Lamborghinis. Não esquecer que o petróleo enchia os cofres do Governo, ao ponto de os palácios de Saddam serem revestidos dos melhores mármores, vindos de Itália, mas também de Portugal, dali da região de Estremoz.

Muitos portugueses terão trabalhado nessas obras a magnificar Saddam, mas o mais célebre dos nossos compatriotas que conviveu com o presidente iraquiano foi um cozinheiro açoriano, de São Jorge. Quando estive em Bagdad, em 2003, ouvi falar desse chef português de Saddam, e cheguei mesmo a pensar se era mito. Só descobri quem era anos mais tarde ao ver uma reportagem da TVI. O ditador, fiquei a saber, seria um bom garfo e não deixou de provar uns pratos portugueses. Já o Al Mansur era de um estaleiro finlandês.

Obrigado a um complicado equilíbrio estratégico entre os Estados Unidos e o Irão, o Iraque tem nestas duas últimas décadas procurado manter-se fiel ao jogo democrático, apesar das tensões religiosas entre sunitas e xiitas, das ambições independentistas curdas e das vagas de terror jihadista. O constitucionalista português Vitalino Canas, que esteve recentemente em Bagdad, disse-me numa entrevista estar otimista com a evolução do país, importante desde a época em que era conhecido como Mesopotâmia e tinha Babilónia como capital de uma civilização que impressiona até hoje os arqueólogos: “O futuro do Iraque interessa ao mundo inteiro. Aliás, basta olhar para o mapa para perceber o valor geoestratégico que tem. Além de que é o único país do mundo árabe onde existe um sistema parlamentar que funciona, em meu entender, razoavelmente, tendo em conta o contexto e todos os condicionantes.” Não parece credível que resgatar das águas o Al Mansur seja uma prioridade.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - O iate de Saddam, o palácio com mármore alentejano e o cozinheiro açoriano do ditador - Leonídio Paulo Ferreira
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O iate de Saddam, o palácio com mármore alentejano e o cozinheiro açoriano do ditador

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18.04.2024

Quem se recorda do vídeo da frágil figura prestes a ser enforcada no penúltimo dia de 2006, ou do homem de cabelo e barba desgrenhadas descoberto três anos antes num buraco, dificilmente associará Saddam Hussein à ideia de um vencedor, menos ainda de um conquistador, mas era assim que o líder iraquiano se via até à invasão americana de março de 2003. Vencedor, ou conquistador, diz-se Al Mansur em árabe. E daí o nome do antigo iate do ditador, que nos últimos dias tem sido notícia por, mesmo afundado, se ter transformado em atração turística.

De Al Mansur, já agora, vem também o Almançor que surge na história da Reconquista, o grande guerreiro muçulmano que por volta do ano 1000 assolou os reinos cristãos da Península Ibérica, ao ponto de atacar uma cidade tão a norte como Santiago de Compostela. Sabe-se, aliás, que Saddam, embora laico, estudava a História do Islão e, sem dúvida, conhecia as façanhas de Almançor, talvez a última exibição de força do Califado de Córdova, o célebre Al Andalus.

O Al Mansur naufragado no Shatt al-Arab, rio formado pela confluência do Tigre e do Eufrates, era o maior dos iates de Saddam. Uma reportagem da CNN revelou que o barco, de 121 metros de comprimento, está ao........

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