Quem pensava, até há umas semanas, nos hutis como uma exótica milícia iemenita envolvida, ao lado do Irão, numa proxy war com a Arábia Saudita, e só minimamente relevante quando enviava ocasionais drones contra campos petrolíferos, terá agora descoberto que da gasolina aos telemóveis, muito pode deixar de chegar - ou chegar mais tarde e mais caro - por causa dos ataques desse grupo xiita aos navios mercantes no Mar Vermelho. A situação é tão grave que uma espécie de coligação internacional já se formou para proteger a liberdade de navegação no Mar Vermelho, do qual toda a gente conhece o extremo norte, o famoso canal do Suez, controlado pelo Egito, mas que tem um frágil extremo sul, o estreito de Bab al-Mandab, facilmente ao alcance dos hutis, que possuem mísseis e drones e já mostraram no passado poder atacar alvos tão longe como Riade, a capital saudita, e agora tentam atingir mesmo Israel, que fica a mais de 2000kms.

Se os hutis se tornaram conhecidos por serem o mais poderoso dos grupos envolvidos na guerra civil iemenita - onde combatem também numa lógica de todos contra todos um Exército governamental apoiado pelos sauditas, uma ala da Al-Qaeda e separatistas saudosos do antigo Iémen do Sul - a verdade é que agora decidiram levar a sua luta para fora de fronteiras, envolvendo-se no conflito israelo-palestiniano. E isto tanto por solidariedade com o Hamas e o Irão, como por causa do seu próprio antissemitismo, uma das componentes de uma ideologia complexa que tem bases tribais O próprio nome hutis vem do seu fundador, já morto, mas cujo clã continua a dar líderes ao movimento formalmente chamado Ansar Allah, ou "Partidários de Deus".

O valor estratégico do Mar Vermelho é antigo, até Portugal, no reinado de D. Manuel I, o tentou tomar aos mamelucos do Egito para efeitos comerciais, mas ganhou novo significado com a construção do canal do Suez no século XIX, obra de engenharia de Ferdinand de Lesseps. Projeto, de início, realizado com capitais franceses e egípcios, mais tarde a participação egípcia foi vendida aos britânicos, que viram assim reduzir-se as distâncias entre as várias partes do império (nomeadamente entre a metrópole e a Índia), o que talvez tenha acrescentado décadas à sua existência.

Nacionalizado em 1956 pelo Egito, o Suez teve obras recentes de alargamento e a sua utilização significa hoje uma poupança de dez dias em relação à rota do Cabo, que contorna o Sul de África, para um cargueiro vindo da China ou do Japão para a Europa, ou de um petroleiro que parta do Golfo Pérsico para um porto, por exemplo, em Portugal. Os dias poupados valem milhões de dólares ou euros, e é por isso que decisões de grandes companhias internacionais, como a dinamarquesa Maersk, de evitar o Mar Vermelho não deixarão de pesar nos preços finais nas gasolineiras ou nas lojas de tecnologia dos centros comerciais.

Os armadores gregos, que controlam 20% da frota mercante mundial, aconselham navegar o mais longe possível da costa iemenita e com redução drástica do número de tripulantes na ponte de comando ou noutras zonas do navio expostas. Uma precaução que faz lembrar muito a época, no virar do milénio, em que os piratas da Somália atacavam navios mercantes no Índico, no caso para pedir resgates, mesmo que na origem de tudo estivesse o fracasso do Estado, que dura até hoje. Quem viu o filme Captain Phillips, com Tom Hanks, terá uma ideia de que como a chamada globalização é também afetada por este tipo de dramas, em locais remotos e com intervenientes até pouco antes ignorados.

Voltemos aos hutis. Não é de crer que tenham qualquer influência no desenrolar da guerra entre Israel e o Hamas, mas ao obrigarem os Estados Unidos e mais nove países a organizarem a defesa da rota do Suez mostram como estamos errados ao pensar que guerras longínquas nunca nos afetam, sobretudo se vivermos no Ocidente. Já devíamos ter aprendido a lição, seja quando, sob a proteção dos talibãs, a Al-Qaeda usou o Afeganistão para preparar os ataques terroristas a Nova Iorque, ou, como já dito, quando o caos na Somália originou senhores da guerra que eram piratas de alto-mar, ou, ainda, quando a guerra na Síria pôs um milhão de refugiados a entrar na Europa.

A guerra no Iémen tem estado esquecida e só foi instrumentalmente relembrada há quase dois anos, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, por servir para denunciar a política de dois pesos e duas medidas dos países ocidentais (e não só). Mas mesmo nessa denúncia, que umas vezes faz mais sentido do que noutras, percebia-se então que os iemenitas importavam menos do que o debate ideológico sobre se era a Rússia a agressora ou se fora levada à agressão pelo tal Ocidente em expansão (leia-se NATO). Agora, discute-se pouco o Iémen em relação ao que se passa em Gaza, como antes se discutiu pouco o que se passava na Etiópia em relação ao que se passava na Ucrânia, apesar de em 2022 o mais mortífero conflito ter sido o do Tigré e não o do Donbass.

Não há objetividade total, nem dos Estados, nem dos media, e muito menos das opiniões públicas, no que diz respeito a guerras, em especial as mais distantes. Mas já não há desculpa para ingenuamente se pensar que algumas não nos impactarão, sobretudo se ocorrerem perto das grandes vias marítimas, nas proximidades de campos de petróleo e de gás ou de minas de Urânio, só para falar, por um instante, de um Níger ainda mais ignorado do que o Iémen, e onde uma junta golpista em choque aberto como o Ocidente e pró-Rússia, ainda não deixou claro o que quer fazer em relação ao futuro do país, que enfrenta desde um jihadismo crescente até uma explosão das rotas migratórias ilegais.

A globalização, na sua pior faceta, também passa por tornar próximos sítios e gente antes desconhecidos, como os hutis.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - O que é que os hutis têm a ver com os nossos telemóveis? - Leonídio Paulo Ferreira
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O que é que os hutis têm a ver com os nossos telemóveis?

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21.12.2023

Quem pensava, até há umas semanas, nos hutis como uma exótica milícia iemenita envolvida, ao lado do Irão, numa proxy war com a Arábia Saudita, e só minimamente relevante quando enviava ocasionais drones contra campos petrolíferos, terá agora descoberto que da gasolina aos telemóveis, muito pode deixar de chegar - ou chegar mais tarde e mais caro - por causa dos ataques desse grupo xiita aos navios mercantes no Mar Vermelho. A situação é tão grave que uma espécie de coligação internacional já se formou para proteger a liberdade de navegação no Mar Vermelho, do qual toda a gente conhece o extremo norte, o famoso canal do Suez, controlado pelo Egito, mas que tem um frágil extremo sul, o estreito de Bab al-Mandab, facilmente ao alcance dos hutis, que possuem mísseis e drones e já mostraram no passado poder atacar alvos tão longe como Riade, a capital saudita, e agora tentam atingir mesmo Israel, que fica a mais de 2000kms.

Se os hutis se tornaram conhecidos por serem o mais poderoso dos grupos envolvidos na guerra civil iemenita - onde combatem também numa lógica de todos contra todos um Exército governamental apoiado pelos sauditas, uma ala da Al-Qaeda e separatistas saudosos do antigo Iémen do Sul - a verdade é que agora decidiram levar a sua luta para fora de fronteiras, envolvendo-se no conflito israelo-palestiniano. E isto tanto por solidariedade com o Hamas e o Irão, como por causa do seu próprio antissemitismo,........

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