Depois da vitória dos conservadores do PiS em finais de 2015, fui em reportagem à Polónia, onde não faltava quem me dissesse temer o fim da democracia, e até houve um intelectual que na televisão comparou Jaroslaw Kaczynski com Salazar, não se percebendo bem se falava de semelhanças ideológicas ou do facto de tanto o ex-primeiro-ministro polaco como o ditador português serem eternos solteiros, quase que destinados a casar-se com a pátria.

Por muito exageradas que parecessem as preocupações, sobretudo do ponto de vista de um jornalista que em países como o Iraque de Saddam Hussein sentira já o que era realmente um regime totalitário, havia a justificar o medo na oposição, as más memórias da primeira passagem do PiS pelo poder em Varsóvia. Fora uma década antes, quando Jaroslaw era primeiro-ministro ao mesmo tempo que o gémeo Lech era presidente. A dupla de irmãos Kaczynski operou então uma viragem fortemente conservadora da sociedade polaca, em simultâneo com um distanciamento dos ideais da UE, a que a Polónia aderira em 2004, no chamado grande alargamento a Leste.

Regressado a Lisboa, depois de vários dias passados em Varsóvia, Cracóvia e Gdansk, entrevistei nesse já distante janeiro de 2016 por telefone Jan Zielonka, um académico polaco que era então professor de Estudos Europeus em Oxford. Explicou-me que, sim, havia razões para preocupação com o regresso do PiS ao poder, mesmo que o Kaczynski sobrevivente (Lech morrera, entretanto, num acidente aéreo) preferisse ficar em segundo plano, promovendo figuras mais jovens do partido tanto para a chefia do Governo, como para a Presidência da República. Zielonka, porém, sublinhou que perante o pessimismo era preciso não esquecer que "a Polónia possui uma vibrante sociedade civil que tem exigido aos seus governantes o respeito pelos princípios básicos de justiça e democracia".

Ora, foi essa sociedade civil que agora, finais de 2023, levou ao afastamento do PiS, mesmo tendo sido este a força mais votada nas legislativas, e à sua substituição por uma coligação em torno de Donald Tusk, de direita, mas liberal, e sobretudo um europeísta convicto - basta recordar que, depois de uma primeira experiência como chefe de Governo, em Varsóvia, se mudou para Bruxelas para ser presidente do Conselho Europeu. Recorro ao próprio Zielonka, que publicou há semanas uma análise no DN, para explicar como foi que a tal "vibrante sociedade civil", de que me falou há quase oito anos, conseguiu por fim afastar o PiS, apesar de este controlar a maioria da comunicação social e ter infiltrado fiéis em todos os setores do aparelho de Estado: "As eleições na Polónia foram decididas pela multidão de jovens eleitores que desconfiam dos partidos políticos e das suas promessas eleitorais. No entanto, eles compareceram em massa às urnas para impedir que a Polónia se afastasse do mundo civilizado."

Sim, a participação eleitoral deste ano bateu até o recorde de 1989, quando os polacos votaram para pôr fim ao regime comunista imposto após a Segunda Guerra Mundial. E o facto de a análise de Zielonka ter como título O regresso da Polónia à Europa diz tudo sobre a importância desta vitória de Tusk, não só para os polacos, como para todos os que acreditam no ideal europeu, como a maioria dos portugueses, que em 1986 celebraram a adesão à então CEE como o passo lógico seguinte à Revolução de Abril.

Se há país que conheceu uma história de extremos é a Polónia: no século XVI, federada com a Lituânia, era o maior país do continente, cujo território ia do Báltico ao Mar Negro. Mas no final do século XVIII foi retalhada por russos, austríacos e prussianos, desaparecendo do mapa durante mais de 100 anos, até renascer no final da Primeira Guerra Mundial. Também não teve um século XX fácil: quando tentava resistir em setembro de 1939 a Ocidente à invasão nazi foi atacada a Leste pelo Exército Vermelho, no âmbito do pacto germano-soviético, que previa a sua divisão. Saiu da Segunda Guerra Mundial satélite da União Soviética, com novas fronteiras e sem a numerosa minoria judaica, exterminada em Auschwitz e outros locais terríveis, o que explica a reação imediata das embaixadas polacas se algum jornal escreve por lapso "campos de concentração polacos". Afinal, não só a Polónia foi exceção entre os países ocupados pelo nazismo por nunca ter tido um Governo colaboracionista, como a nacionalidade mais representada no Yad Vashem, em Jerusalém, é a polaca.

Também o fim do domínio soviético sobre metade da Europa não é explicável sem se mencionar dois polacos, o eletricista Lech Walesa, sindicalista que enfrentou o comunismo, e agora assistiu ao regresso triunfal de Tusk, e Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II. Sem eles, talvez metade dos atuais países membros da UE ainda vivessem à margem da democracia e numa qualquer relação de submissão a Moscovo.

Com Tusk como primeiro-ministro, a vocação ocidental da Polónia confirma-se. Nem o PiS, aliás, a punha em causa, mesmo que mostrasse mais empenho na NATO do que na UE. O apoio à Ucrânia perante a Rússia será uma realidade com o novo Governo polaco como o era com o anterior, mas a capacidade de Varsóvia se afirmar como uma das capitais líderes da UE é muito maior e isso pode valer muito a Kiev, no esforço para receber novas ajudas contra o invasor. Tusk, que vai já participar na cimeira europeia que hoje se inicia, pode até ter um papel-chave na aceleração do processo de adesão da Ucrânia. O centro de gravidade da UE deslocou-se para Leste, o que nem sempre será bem entendido em Lisboa, até pelos muitos que se sentem próximos de Tusk.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - O regresso de Tusk - Leonídio Paulo Ferreira
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O regresso de Tusk

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14.12.2023

Depois da vitória dos conservadores do PiS em finais de 2015, fui em reportagem à Polónia, onde não faltava quem me dissesse temer o fim da democracia, e até houve um intelectual que na televisão comparou Jaroslaw Kaczynski com Salazar, não se percebendo bem se falava de semelhanças ideológicas ou do facto de tanto o ex-primeiro-ministro polaco como o ditador português serem eternos solteiros, quase que destinados a casar-se com a pátria.

Por muito exageradas que parecessem as preocupações, sobretudo do ponto de vista de um jornalista que em países como o Iraque de Saddam Hussein sentira já o que era realmente um regime totalitário, havia a justificar o medo na oposição, as más memórias da primeira passagem do PiS pelo poder em Varsóvia. Fora uma década antes, quando Jaroslaw era primeiro-ministro ao mesmo tempo que o gémeo Lech era presidente. A dupla de irmãos Kaczynski operou então uma viragem fortemente conservadora da sociedade polaca, em simultâneo com um distanciamento dos ideais da UE, a que a Polónia aderira em 2004, no chamado grande alargamento a Leste.

Regressado a Lisboa, depois de vários dias passados em Varsóvia, Cracóvia e Gdansk, entrevistei nesse já distante janeiro de 2016 por telefone Jan Zielonka, um académico polaco que era então professor de Estudos Europeus em Oxford. Explicou-me que, sim, havia razões para preocupação com o regresso do PiS ao poder, mesmo que........

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