Comecei ontem praticamente o dia a ouvir a TSF, com Rui Pedro Tendinha, também enviado do DN, numa crónica de Berlim a noticiar como Martin Scorsese tinha sido acolhido em apoteose ao receber o seu Urso de Ouro honorário. Só lamento que entre os muitos filmes de sucesso que este realizador americano fez ao longo da vida, de Taxi Driver a Tudo Bons Rapazes ou O Irlandês, não conste Silêncio. É um filme que fala da presença portuguesa no Japão. Um filme inspirado num romance homónimo do escritor japonês Shusaku Endo. Uma história trágica, que fala das perseguições aos cristãos na primeira metade do século XVII. É a época final do século cristão no Japão, começado em 1543, fez o ano passado 480 anos.

É pena que Scorsese, agora tão justamente homenageado no Festival de Cinema de Berlim, não tenha conseguido convencer as audiências globais com o seu Silêncio. É um grande filme, mas é um filme difícil de compreender. Recordo que umas das cenas iniciais mostra cristãos, presos em cruzes, a serem fustigados por ondas, à medida que a maré subia, no sul do Japão. Há pouco enquadramento histórico ou nenhum. Imagino um espectador médio em Nova Iorque, ou Paris, ou Londres, ou mesmo Berlim, a tentar perceber como é que há missionários portugueses no Japão. Padres que preferem a tortura à apostasia. E que pelo exemplo atraem os cristãos locais para o martírio.

O Japão foi o ponto mais longínquo a que os portugueses chegaram na sua aventura da expansão, ou dos Descobrimentos, como queiramos chamar. Bem, podemos dizer que foi Timor esse ponto mais extremo. E há até quem diga que há algumas provas físicas de que as caravelas de Portugal chegaram também à Austrália. Mas a Austrália não entrou no circuito mundial. Teve de esperar mais dois séculos pela descoberta oficial pelos britânicos.
O Japão, sim. Com a chegada dos mercadores portugueses a Tanegaxima, deixou de ser um arquipélago isolado nos confins da Ásia, que contactava apenas com a Coreia e a China, e que sabia da existência da Índia, por causa da ligação budista. O Japão, a partir do momento em que os primeiros portugueses lá puseram pé, descobriu o mundo. Foi um encontro de civilizações com pouca comparação na história. Nunca um japonês tinha visto um europeu. Nunca um europeu tinha visto um japonês.

Recordo que os primeiros europeus a chegarem por mar à Índia foram os portugueses, que os primeiros europeus a chegarem por mar à China foram também os portugueses, mas outros europeus tinham já chegado à China e à Índia, por terra. Famosos, foram o veneziano Marco Polo e, muito antes, o grego Alexandre.

Os portugueses chegaram ao Japão numa altura em que o país estava envolvido numa guerra civil que parecia interminável. E não chegaram como conquistadores, apenas como comerciantes. Por isso, a história luso-japonesa, tão celebrada quase meio milénio depois, não tem o traumatismo da colonização, não tem o traumatismo da conquista. Tem, porém, o traumatismo, sim, da perseguição aos missionários e da expulsão definitiva dos portugueses em 1639.

Os portugueses não tiveram mais a possibilidade de voltar a um país ao qual apresentaram a moderna ciência, como, em tempos, o agora imperador emérito Akihito escreveu num artigo na Science. Depois do desembarque em Tanegaxima, pela primeira vez os japoneses tiveram consciência de que o mundo era amplo. Viram mapas que já incluíam a América. Os portugueses também introduziram a espingarda, uma tecnologia que era desconhecida nas ilhas da época. Uma tecnologia que os japoneses aprenderam rapidamente e aperfeiçoaram, um pouco a antecipar aquilo que seria o Japão a partir de finais do século XIX, quando reabriu ao mundo e começou a transformar-se na grande potência industrial que ainda hoje é.

Com a espingarda, a guerra civil deixou de ser um permanente empate. Finalmente, havia a possibilidade de um dos lados se impor e reunificar o Japão. Acabou por acontecer sob o clã dos Tokugawa, que nunca se proclamaram imperadores, sempre respeitaram a família imperial. A mesma de sempre, que continuou depois do afastamento dos xóguns e que até foi viver para o palácio destes em Edo, rebatizada de Tóquio. Naruhito, imperador desde 2019, faz amanhã 64 anos.

Voltemos ao Silêncio de Martin Scorsese. O filme estreou em 2016. Por coincidência, visitei o Japão no início de 2017. Estive em Kyushu, das quatro grandes ilhas japonesas aquela que fica mais ao sul. Aquela também onde houve mais presença portuguesa. E onde permanecem até hoje mais vestígios dessa presença. Nagasaki, que para o mundo é sobretudo famosa por ter sido vítima da segunda bomba atómica da história, é uma cidade que foi praticamente criada pelos jesuítas portugueses no século XVI. Uma cidade onde chegou a haver uma comunidade luso-japonesa. Crianças que misturavam as duas culturas, os dois povos. Em Nagasaki, testemunhei, há uma grande memória de Portugal. Uma memória positiva. Há festivais que celebram a chegada dos portugueses. A cidade continua também a ter uma presença cristã que supera claramente a do resto do Japão, onde os cristãos não passam de um por cento da população. E há um doce popular na cidade, kasutera, Castela, que faz lembrar muito o nosso pão de ló. E que obviamente toda a gente sabe que é um legado dos portugueses.

A uns quilómetros de Nagasaki há uma zona chamada Sotome. É lá que está o museu dedicado a Shusaku Endo. É também naquela região que aconteceu a maior parte daquilo que é relatado no Silêncio, filme e livro. Quem viu o filme reconheceria estas paisagens, se bem que por facilidade de localização, até tenha sido a costa taiwanesa que tenha servido o cenário.

Visitei o museu. O escritor não era de Kyushu. Era de Tóquio. Mas, ele próprio cristão, sentiu-se sempre muito ligado à história dos cristãos escondidos, que durante duzentos anos mantiveram a sua fé apesar das perseguições. E quando teve que escolher um sítio para guardar a sua máquina de escrever, guardar a escrivaninha que usava, guardar a sua biblioteca, não hesitou em apontar para uma destas falésias batidas pelas ondas do mar onde ficam as pequenas ilhas de Goto, refúgio dos cristãos.

As histórias de Portugal e do Japão tocam-se pois. A primeira vinda de japoneses à Europa, a famosa embaixada dos jovens, aconteceu já no tempo da União Ibérica. E por isso, os jovens japoneses viajaram via Macau, via Goa, depois desembarcaram em Lisboa, seguiram para Évora, depois Madrid para ver o rei e continuaram até Roma, onde deslumbraram o Papa. Regressados ao seu Japão, houve quem se tornasse padres e acabasse também martirizado, vítima dessa perseguição a uma religião que os Tokugawa consideravam ameaçadora para o seu projeto de unidade nacional. Diga-se em abono da verdade que algumas seitas budistas, extremistas, acabaram por ser também perseguidas.

No Japão, que hoje tem uma liberdade religiosa absoluta, continua a predominar uma religião autóctona, o xintoísmo. Mas, cristianismo, budismo, islão, são hoje praticados livremente. Scorsese não conseguiu que o seu filme sobre Cristóvão Ferreira, o jesuíta português apóstata, fosse um sucesso. Talvez a culpa não seja sua, seja mesmo do tema. E qual é o tema? Podemos pensar que o tema é a perseguição dos cristãos, primeiro que tudo os sacerdotes portugueses, mas também os cristãos japoneses.

Calcula-se cerca de 300 mil nessa época. Muitos eram oriundos de classes baixas, pescadores, mas havia alguns senhores da guerra. Daí a preocupação dos Tokugawa. Mas o filme, tal como o livro, é sobretudo sobre fé. Shusaku Endo ficou extremamente abatido quando soube das notícias de Nagasaki. Das dezenas de milhares de mortos na bomba atómica americana lançada sobre o Japão para o obrigar à rendição no final da Segunda Guerra Mundial. Ficou abatido pela destruição, pelo sofrimento, pela morte, mas também naquele dia da bomba, 9 de Agosto de 1945. Naquela hora da bomba, rezava-se a missa na catedral de Urakami. E a explosão destruiu por completo a zona em redor. Uma vez mais, os cristãos de Nagasaki, os cristãos japoneses, sofriam a destruição. Eles que tinham começado a recuperar. Em número, em importância, em dinamismo, depois de meados do século XIX. Voltavam a desaparecer. Ou quase. Nagasaki, resistente, continua a ser a capital cristã do Japão.

Na ilha artificial de Dejima, que hoje quase não se nota ser ilha pois está quase colada do porto, ainda estão as construções que foram feitas para os comerciantes portugueses, já na fase final da sua presença, para manter o negócio no Japão. Depois da expulsão, instalaram-se lá os holandeses. Como eram calvinistas, e não tentavam evangelizar, foram tolerados. Durante dois séculos, Dejima foi a única porta de contacto entre o Japão e o mundo ocidental. Os portugueses desapareceram do Japão. Mas Portugal nunca desapareceu da história do Japão. O mundo mais culto, mais intelectual, pode ter consciência disso. O resto do mundo teve a oportunidade de o aprender, e perceber um pouco mais sobre o extraordinário encontro entre o povo português e o povo japonês, através do Silêncio de Scorsese. Mas o grande realizador, o mestre, infelizmente, não foi tão genial como nos habituou.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Scorsese, o Silêncio e os portugueses no Japão - Leonídio Paulo Ferreira
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Scorsese, o Silêncio e os portugueses no Japão

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22.02.2024

Comecei ontem praticamente o dia a ouvir a TSF, com Rui Pedro Tendinha, também enviado do DN, numa crónica de Berlim a noticiar como Martin Scorsese tinha sido acolhido em apoteose ao receber o seu Urso de Ouro honorário. Só lamento que entre os muitos filmes de sucesso que este realizador americano fez ao longo da vida, de Taxi Driver a Tudo Bons Rapazes ou O Irlandês, não conste Silêncio. É um filme que fala da presença portuguesa no Japão. Um filme inspirado num romance homónimo do escritor japonês Shusaku Endo. Uma história trágica, que fala das perseguições aos cristãos na primeira metade do século XVII. É a época final do século cristão no Japão, começado em 1543, fez o ano passado 480 anos.

É pena que Scorsese, agora tão justamente homenageado no Festival de Cinema de Berlim, não tenha conseguido convencer as audiências globais com o seu Silêncio. É um grande filme, mas é um filme difícil de compreender. Recordo que umas das cenas iniciais mostra cristãos, presos em cruzes, a serem fustigados por ondas, à medida que a maré subia, no sul do Japão. Há pouco enquadramento histórico ou nenhum. Imagino um espectador médio em Nova Iorque, ou Paris, ou Londres, ou mesmo Berlim, a tentar perceber como é que há missionários portugueses no Japão. Padres que preferem a tortura à apostasia. E que pelo exemplo atraem os cristãos locais para o martírio.

O Japão foi o ponto mais longínquo a que os portugueses chegaram na sua aventura da expansão, ou dos Descobrimentos, como queiramos chamar. Bem, podemos dizer que foi Timor esse ponto mais extremo. E há até quem diga que há algumas provas físicas de que as caravelas de Portugal chegaram também à Austrália. Mas a Austrália não entrou no circuito mundial. Teve de esperar mais dois séculos pela descoberta oficial pelos britânicos.
O Japão, sim. Com a chegada dos mercadores portugueses a Tanegaxima, deixou de ser um arquipélago isolado nos confins da Ásia, que contactava apenas com a Coreia e a China, e que sabia da existência da Índia, por causa da ligação budista. O Japão, a partir do momento em que os primeiros portugueses lá puseram pé, descobriu o mundo. Foi um encontro de civilizações com pouca comparação na história. Nunca um japonês tinha visto um europeu. Nunca um europeu tinha visto um........

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