Sempre que ando mais seriamente a pensar em sair do Facebook, algo de muito interessante obriga-me a repensar. A culpa é dos amigos que por ali tenho, como Mário Avelar, que um dia me fez voltar atrás quando partilhou que a filha e o neto de John dos Passos vinham a Lisboa para um colóquio dedicado ao autor de Manhattan Transfer, despertando a vontade de fazer uma entrevista sobre a vida do escritor americano de origem madeirense. Agora Mário Avelar, que há 25 anos foi meu professor no mestrado, voltou a ajudar a reconciliar-me com essa rede social, que se diz estar cheia de vícios, ser incapaz de atrair os jovens e já ultrapassada pelo Instagram e pelo TikTok. E fê-lo ao partilhar um texto brilhante de Frederico Lourenço sobre o Velho do Restelo, figura que surge no Canto IV d’Os Lusíadas a maldizer os Descobrimentos. “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça desta vaidade, a quem chamamos Fama!”, diz, entre outras arenguices, o velho “de aspeto venerando”, ali na praia junto ao Tejo, com “voz levantada” e depois de menear “três vezes a cabeça, descontente”.

O Velho do Restelo é, com o Adamastor, das figuras mais conhecidas da epopeia em que Luís Vaz de Camões põe como figura central Vasco da Gama, na sua descoberta do caminho marítimo para a Índia. E ganhou um lugar na língua portuguesa. Quantos de nós, quando ouvimos alguém a tentar contrariar o nosso entusiasmo, não chamámos já de Velho do Restelo a quem apresenta argumentos de que não gostamos?

Que escreveu agora Frederico Lourenço sobre o Velho do Restelo que tanto me fascinou? Que talvez seja uma Velha do Restelo! Sim, uma mulher, o que contraria todo o imaginário popular dos últimos quatro séculos ou mais, até a célebre pintura feita por Columbano Bordalo Pinheiro e que está na Sala Camões do Museu Militar, em Lisboa.

Frederico Lourenço, um mestre dos estudos greco-latinos (como Mário Avelar o é nos estudos anglo-americanos), começa por fazer justiça a Joaquim Carvalho, que em tempos idos na revista Brotéria afirmou que Camões conheceria o poema Argonáutica escrito por Apolónio de Rodes no século III a.C. E depois elabora a partir daí. Sem querer eu complicar muito, há uma mãe que chora n’Os Lusíadas pelo filho que parte nas caravelas para a Índia, tal como a mãe de Jasão chora quando este parte para a Colquídia, antigo reino na parte ocidental do que é hoje a Geórgia (a parte oriental, outro reino, chegou a chamar-se Ibéria!)

E há também, reforça Frederico Lourenço, esse Velho do Restelo, como há uma mulher idosa que procura aproximar-se dos Argonautas quando eles se dirigem para a nau. Mas se o Velho do Restelo fala, a anciã, uma sacerdotisa de Artémis, não. Conclusão do classicista: “o velho agoirento de Camões é o desenvolvimento de algo que Apolónio elide. Ou seja: Camões faz-nos ouvir a voz à qual Apolónio tira a fala. As palavras que ficaram por dizer no poema do século III a.C. são ditas, pela pena de Camões, no século XVI português”.

O tema é tão fascinante como complexo e esforço-me por não errar no que cito e enquadro. Não consigo deixar de reparar como Camões é mesmo um poeta ímpar, dono de uma grande cultura clássica, capaz pois de ler Apolónio de Rodes (na versão latina), mas também homem do mundo . Era certamente o mais viajado dos grandes literatos da sua época, pois conheceu Marrocos, Índia e China, enquanto Miguel de Cervantes foi uma personagem do Mediterrâneo (combateu em Lepanto e foi espião em Argel) e William Shakespeare nunca terá saído de Inglaterra (o que torna ainda mais impressionante a sua obra, admita-se).

O pequeno texto de Frederico Lourenço partilhado por Mário Avelar e intitulado “A Velha do Restelo” surge a propósito do quinto centenário do nascimento de Camões (janeiro de 1524?). Delicioso de ler, conta-nos ainda como numa ópera de António Vitorino d’Almeida, O Canto da Ocidental Praia, o Velho do Restelo foi encarnado no São Carlos por uma mulher, ousadia ou talvez outra coisa por parte do célebre maestro, numa récita que o próprio Frederico Lourenço testemunhou muito jovem, pois vivia-se 1975. Um canto de uma Velha do Restelo, e passo a citar, “saudosa de uma ‘Idade d’ouro’ que, sem que ela o soubesse, estava lentamente a nascer: o Portugal do pós 25 de Abril, de que todas e todos nos podemos orgulhar”.

Atentemos nesta última frase, agora que estamos a dois meses de celebrar os 50 anos da Revolução dos Cravos. Sim. Continuam tantos sonhos por concretizar, mas não deixa de ser verdade que há razão para orgulho no país do pós 25 de Abril. Sim, verdade, por muito que Velhos e Velhas do Restelo, de todas as idades, insistam no contrário. Obrigado, Mário, um abraço. Obrigado, Frederico, não nos conhecemos, mas parabéns pelo tanto que nos ensina.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Velhos e Velhas do Restelo  - Leonídio Paulo Ferreira
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Velhos e Velhas do Restelo 

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29.02.2024

Sempre que ando mais seriamente a pensar em sair do Facebook, algo de muito interessante obriga-me a repensar. A culpa é dos amigos que por ali tenho, como Mário Avelar, que um dia me fez voltar atrás quando partilhou que a filha e o neto de John dos Passos vinham a Lisboa para um colóquio dedicado ao autor de Manhattan Transfer, despertando a vontade de fazer uma entrevista sobre a vida do escritor americano de origem madeirense. Agora Mário Avelar, que há 25 anos foi meu professor no mestrado, voltou a ajudar a reconciliar-me com essa rede social, que se diz estar cheia de vícios, ser incapaz de atrair os jovens e já ultrapassada pelo Instagram e pelo TikTok. E fê-lo ao partilhar um texto brilhante de Frederico Lourenço sobre o Velho do Restelo, figura que surge no Canto IV d’Os Lusíadas a maldizer os Descobrimentos. “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça desta vaidade, a quem chamamos Fama!”, diz, entre outras arenguices, o velho “de aspeto venerando”, ali na praia junto ao Tejo, com “voz levantada” e depois de menear “três vezes a cabeça, descontente”.

O Velho do Restelo é, com o Adamastor, das figuras mais conhecidas da epopeia em que Luís Vaz de Camões põe como figura........

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