Há vários meses, comecei a fazer uma sondagem informal junto dos motoristas paquistaneses que abundam na Uber e outras empresas de TVDE em Lisboa. Muitos deles dizem ter como ídolo Imran Khan. E foram os candidatos do seu partido, impedido de participar nas eleições, que, concorrendo como independentes, ganharam há dias a maioria dos assentos no Parlamento de Islamabad. Khan, que está preso, celebrou a vitória através de uma declaração feita pelos colaboradores com recurso à Inteligência Artificial.

Depois, aproveitou uma ida a tribunal para dizer aos jornalistas que recusa qualquer solução de Governo a envolver os partidos dinásticos, exigindo, isso sim, a recontagem dos votos.

Comecei a carreira a ouvir opiniões contraditórias sobre citar numa reportagem no estrangeiro o taxista que faz a ligação entre o aeroporto e o hotel. “É a voz do povo”, diziam uns. “Não são representativos”, contrapunham outros. E havia também quem dissesse ser “preguiça” usar a conversa de taxista para alimentar o primeiro texto a ser enviado, fosse de Rabat ou de Rawalpindi. Refiro aqui a capital marroquina por ter sido, em 1993, o meu primeiro destino ao serviço do DN, e a cidade paquistanesa vizinha de Islamabad por ter lá passado várias semanas, no outono de 2001, vindo de Carachi e com múltiplas incursões mais tarde a Peshawar, procurando depois dos atentados do 11 de Setembro maneira de entrar no Afeganistão dos talibãs. Portanto, da conversa nos táxis lá às perguntas nos TVDE cá vai um pequeno passo. Que vale o que vale, como se diz.

Relembro-me que cheguei a ir à embaixada talibã em Islamabad tentar um visto, mas nunca consegui passar o Khyber Pass, e só visitaria Cabul em 2005, graças à boleia de um C-130 da Força Área Portuguesa, mas isso é outra história. Aqui o que interessa é que entrando em Lisboa num TVDE, sabendo de antemão o nome do motorista, e depois de perguntar se é paquistanês e de que cidade (despisto logo se é um muçulmano indiano, que são mais de 200 milhões, quase tantos como os paquistaneses), posso reivindicar que já estive no Sindh, ou no Penjabe ou na Khyber Pakhtunkhwa, e sobre esta última até comento que ainda há duas décadas se chamava Província da Fronteira do Noroeste, alusão aos tempos coloniais britânicos que só acabaram com a partição de 1947.

Em regra, a conversa no carro flui, em inglês, indo parar por conveniência minha à política. Claro, o nome do antigo primeiro-ministro Khan vem à baila e a novidade que ele representa no seu amado país. Também eu elogio o Paquistão que, percebi no mês que por lá andei, era muito mais do que as imagens de barbudos a queimar bandeiras da América que via na CNN. Por exemplo, em Carachi, na universidade, eram muitas as futuras cientistas, uma face bem mais simpática do país.

Khan, capitão da seleção que foi Campeã Mundial de Críquete em 1992, entrou tardiamente na política e só depois de deixar para trás uma vida de estrela, que incluiu um casamento (e um divórcio) com uma judia britânica. Com um discurso respeitador do Islão, numa versão moderada mas fiel aos valores da honestidade e da modéstia, conseguiu que o seu Movimento Paquistanês pela Justiça fosse ganhando terreno, até que em 2018 venceu as eleições. Foi um choque para a Liga Muçulmana, da família Sharif, e para o Partido do Povo Paquistanês, dos Bhutto. Mas os todo-poderosos militares até terão visto com bons olhos o novo primeiro-ministro.

Ao fim de quatro anos, porém, os generais já não suportavam Khan, que os desafiou. E uma aliança de conveniência entre os dois grandes partidos tradicionais permitiu, em 2022, o seu afastamento. Os apoiantes de Khan vieram para a rua protestar, mas a repressão foi imediata. E num comício, o Campeão de Críquete foi baleado. A seguir choveram acusações, até de vender ofertas de líderes estrangeiros, e não tardou a que fosse preso. O partido foi impedido agora de se apresentar nas eleições de 8 de fevereiro e os candidatos não puderam usar o símbolo do bastão de críquete, tão identificável e tão temível.

Voltei a viajar de Uber já depois dos resultados. E ouvi palavras de indignação por “serem os mesmos de sempre” a pôr e dispor. Os mesmos de sempre são os militares, influentes num país com arma nuclear e rivalidade com a Índia, e as dinastias políticas. Nawaz Sharif e o irmão Shehbaz, ambos ex-primeiros-ministros, representam uma delas, Bilawal Bhutto Zardari a outra.


Este tem atrás de si a tragédia, pois é filho de Benazir, morta num atentado, e neto de Zulfikar Ali Bhutto, enforcado por ordem dos militares muito antes dele nascer. Mãe e avô foram primeiros-ministros (e o pai, Asif Ali Zardari, foi presidente). Escusado será dizer que são muitas ao longo dos anos as acusações de corrupção contra os Sharif e os Bhutto-Zardari e que essa é uma das razões da popularidade de Khan.

Khan esforçou-se por maior justiça social, num Paquistão cuja população tem um potencial enorme, mas precisa de um projeto de desenvolvimento para o país. A pandemia, porém, arruinou os seus planos, que passavam também por fortalecer a relação com a China, com riscos de desagradar à América. E o combate à corrupção trouxe-lhe inimigos em demasia.

Khan, de facto, é o político mais popular do país. Os jovens identificam-se com ele, veem nele um dos seus, mesmo tendo 71 anos. Para já, estão nas ruas a exigir respeito pela democracia, descontentes com o rumo que tomou a pátria para os muçulmanos da Índia que Mohammed Ali Jinnah arrancou aos britânicos em 1947. Um Paquistão, ou “país dos puros”, que reivindica o legado civilizacional do Império Mogol.

Os paquistaneses nos TVDE em Portugal são também jovens. E a razão para a sondagem ter batido mais ou menos certo é que mais de metade do eleitorado do Paquistão é jovem e quer mudança. E se o voto não conta, então ameaça votar com os pés, como fizeram quase um milhão de paquistaneses no ano passado, ao emigrar. Aqueles com diploma de engenheiro acabam nas grandes empresas tecnológicas do Ocidente, os outros a conduzir, nas entregas ou na agricultura . Se alguém fica mais pobre é sem dúvida o tal “país dos puros”.

Diretor adjunto do Diário de Notícias

QOSHE - Votar com os pés - Leonídio Paulo Ferreira
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Votar com os pés

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15.02.2024

Há vários meses, comecei a fazer uma sondagem informal junto dos motoristas paquistaneses que abundam na Uber e outras empresas de TVDE em Lisboa. Muitos deles dizem ter como ídolo Imran Khan. E foram os candidatos do seu partido, impedido de participar nas eleições, que, concorrendo como independentes, ganharam há dias a maioria dos assentos no Parlamento de Islamabad. Khan, que está preso, celebrou a vitória através de uma declaração feita pelos colaboradores com recurso à Inteligência Artificial.

Depois, aproveitou uma ida a tribunal para dizer aos jornalistas que recusa qualquer solução de Governo a envolver os partidos dinásticos, exigindo, isso sim, a recontagem dos votos.

Comecei a carreira a ouvir opiniões contraditórias sobre citar numa reportagem no estrangeiro o taxista que faz a ligação entre o aeroporto e o hotel. “É a voz do povo”, diziam uns. “Não são representativos”, contrapunham outros. E havia também quem dissesse ser “preguiça” usar a conversa de taxista para alimentar o primeiro texto a ser enviado, fosse de Rabat ou de Rawalpindi. Refiro aqui a capital marroquina por ter sido, em 1993, o meu primeiro destino ao serviço do DN, e a cidade paquistanesa vizinha de Islamabad por ter lá passado várias semanas, no outono de 2001, vindo de Carachi e com múltiplas incursões mais tarde a Peshawar, procurando depois dos atentados do 11 de Setembro maneira de entrar no Afeganistão dos talibãs. Portanto, da conversa nos táxis lá às perguntas nos TVDE cá vai um pequeno passo. Que vale o que vale, como se........

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