Há que ver até ao fim Os Outros, magnífico filme de terror escrito e realizado pelo hispano-chileno Alejandro Amenábar, para perceber o motivo dos fenómenos paranormais que assolam a mansão onde Grace Stewart reside com os dois filhos, Anne e Nicholas. Num crescendo de arrepios, a personagem interpretada por Nicole Kidman procura os alegados intrusos, com a nada diligente ajuda de uma governanta, um jardineiro e uma criada muda, que apareceram do nada à sua porta, mas a sucessão de vozes e ruídos, tal como o facto de a primogénita alegar manter contacto com um rapaz chamado Victor, os seus pais e uma anciã cega, levam a que a protagonista do filme estreado em 2001 desconfie que o seu lar está a ser assombrado por espíritos, impressão confirmada ao descobrir fotografias dos cadáveres dos empregados, falecidos meio século antes, num surto de tuberculose.

Na penúltima sequência de Os Outros, filmado em Espanha (e para todos os efeitos uma produção espanhola, vencedora de oito prémios Goya, embora não tenha um só diálogo em castelhano), as ocorrências numa assoalhada da mansão, supostamente localizada na ilha britânica de Jersey, revelam que, afinal, os fantasmas são outros. A medo, as crianças revelam à idosa - uma médium contratada pelos novos proprietários - que a mãe perdeu a cabeça ao saber que o marido (que no filme até ensaia um regresso fugaz ao lar) morreu na Segunda Guerra Mundial, pelo que asfixiou a descendência com uma almofada antes de cometer suicídio. Mas na manhã seguinte acordou, como se tudo tivesse sido apenas um pesadelo, vivendo desde então a proteger os filhos da luz solar com pesadas cortinas negras a tapar as janelas.

A sobreposição de duas famílias na mansão, uma constituída por três fantasmas mortos desde 1945 (e um trio de empregados que deram os últimos suspiros em 1891) e outra formada por um casal e o filho, vivos e aterrorizados pelas presenças que sentem, anos mais tarde, serve de metáfora para o que tem ocorrido nas semanas antes das eleições legislativas do próximo domingo. Sobretudo nos debates entre líderes partidários, nos quais os moderadores foram, muitas vezes, forçados a fazer o papel da anciã com dotes mediúnicos, tamanha a diferença entre os dois países que os defensores da mudança e os arautos da estabilidade acreditam existir no mesmo retângulo à beira-mar plantado, tal qual a difícil convivência da personagem de Nicole Kidman e sua linhagem com os novos donos da mansão na Ilha de Jersey, que na realidade é um palácio na Cantábria, a cerca de 400 quilómetros de Bragança.

Assistimos a duas visões inconciliáveis do estado em que Portugal se encontra, e do caminho para onde deve seguir, com expoentes como a pergunta “afinal, o que não funciona?”, feita num debate pelo secretário-geral do PS (e governante em mais de sete dos últimos oito anos), Pedro Nuno Santos. E, por muitas voltas que se dê à realidade, está em causa a escolha entre estabilidade e mudança. Sendo certo que a primeira, alicerçada na crença de um Estado que possa oferecer melhores serviços públicos, com menos Urgências Hospitalares encerradas, menos alunos sem aulas por falta de professor e menor ausência de oferta pública de habitação a preços acessíveis, traz consigo o risco da estagnação que nos trouxe até aqui. E que a segunda, impulsionada pela descida da carga fiscal e aposta na iniciativa privada para melhorar rendimentos e travar a emigração de jovens qualificados, acarreta o risco de adelgaçar os cofres públicos se o crescimento económico não se concretizar ao ritmo esperado.

É isto o que está em causa a 10 de março, cabendo aos portugueses escolherem entre dois caminhos que serão sempre trabalhosos para quem for o próximo primeiro-ministro, tendo em conta as concessões que Pedro Nuno Santos, que sucedeu a António Costa enquanto “neto de sapateiro e filho de empresário”, terá de fazer à sua esquerda se prosseguir o longo ciclo do PS, e as dificuldades de Luís Montenegro em implementar reformas que alterem a economia portuguesa perante uma provável minoria de bloqueio do Chega de André Ventura.

Tudo o mais não passa de fantasmas agitados de parte a parte, mas mais por uns do que por outros. Tal qual a personagem de Nicole Kidman e os seus filhos, que até levam os “intrusos” a abandonar a mansão no final de Os Outros. Já nestas legislativas não há spoilers, e é preciso aguardar (pelo menos) até ao fim da noite de domingo para ver como será o que poderá revelar-se uma governação de curta-metragem.

QOSHE - Eleições na mansão da Nicole Kidman - Leonardo Ralha
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Eleições na mansão da Nicole Kidman

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06.03.2024

Há que ver até ao fim Os Outros, magnífico filme de terror escrito e realizado pelo hispano-chileno Alejandro Amenábar, para perceber o motivo dos fenómenos paranormais que assolam a mansão onde Grace Stewart reside com os dois filhos, Anne e Nicholas. Num crescendo de arrepios, a personagem interpretada por Nicole Kidman procura os alegados intrusos, com a nada diligente ajuda de uma governanta, um jardineiro e uma criada muda, que apareceram do nada à sua porta, mas a sucessão de vozes e ruídos, tal como o facto de a primogénita alegar manter contacto com um rapaz chamado Victor, os seus pais e uma anciã cega, levam a que a protagonista do filme estreado em 2001 desconfie que o seu lar está a ser assombrado por espíritos, impressão confirmada ao descobrir fotografias dos cadáveres dos empregados, falecidos meio século antes, num surto de tuberculose.

Na penúltima sequência de Os Outros, filmado em Espanha (e para todos os efeitos uma produção espanhola, vencedora de oito prémios Goya, embora não tenha um só diálogo em castelhano), as ocorrências numa assoalhada da mansão, supostamente localizada na........

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