Esta minha crónica, que hoje calha no dia a seguir ao Natal, procurou, por entre os meandros da minha mente e as primeiras páginas dos jornais caídos pelo chão, um tema, uma ideia, um motivo. Esta incómoda confissão busca apoio e alguma justificação no famoso texto de Eça de Queirós, no qual o autor, desesperado por não encontrar assunto para um artigo que prometera, enquanto ouvia à sua porta o chiar das botas do "moço da tipografia", que vinha buscar as suas laudas, acaba por dar uma medonha descasca...ao bei de Tunes! Nada mais lhe ocorrera.

No dia a seguir ao Natal, com os papéis coloridos que embrulharam presentes já amontoados no lixo e a vaga sensação de azia ou de nostalgia do infinito, conforme quisermos interpretar as mensagens do nosso corpo, a azedar-nos a boca, que esperará de nós o leitor? Beis de Tunes para descascar não faltam por esse mundo, mas depois de todo um ano com bem mais sinistras figuras do que esse pobre bei a abrirem os nossos telejornais, talvez mereçamos hoje um pouco de sossego.

A evasão é mal vista pelos rigorosos puritanos, que não toleram que desviemos os olhos, por um momento que seja, da miséria e da fúria do mundo. Mas ser-nos-ia possível estarmos vivos sem esses momentos de evasão, lúdica, estética, frívola, o que quiserem, mas de alheamento e de festa?

Eu nunca perco na manhã do dia 1 de janeiro, enquanto todos dormem em casa, o Concerto de Ano Novo no Musikverein, transmitido pela televisão e comentado pelo Júlio Isidro. É um dos momentos de evasão que procuro há muitos anos preservar, como reserva de alegria.

Stefan Zweig, que releio nestes dias, assumiu sempre, face aos tempos terríveis que viveu, uma posição mais estética do que ética, que Hannah Arendt censurava, por considerar que Zweig vivia encerrado numa bolha de esteticismo, em denegação do seu tempo. A sua morte trágica mostra como essa bolha era frágil e precária, dominada que estava pela nostalgia de uma Viena de antes da Primeira Guerra Mundial e de um império multinacional, o Império Austro-Húngaro, liquidado pela guerra de 1914-1918 e pelo princípio das nacionalidades. Dessa Viena, de Budapeste, de Praga, das grandes cidades desse império que não sabia que ia morrer e que Musil crismou sarcasticamente de Cacânia, vieram as ideias mais inovadoras que marcaram o século XX, as filosofias mais profundas e as valsas e operetas mais ligeiras, a psicanálise de Freud e a filosofia de Wittgenstein, a música dodecafónica e as óperas de Richard Strauss, o antissemitismo de Lueger e o sionismo de Herzl, tudo isto junto a uma literatura que continua ainda hoje a marcar-nos com a sua nostalgia e o seu inquieto questionamento...

A Viena de 1900, que Zweig evoca constantemente, o "apocalipse alegre", como lhe chamou Herman Broch, atrai-nos como um mundo perdido e brilhante de evasão e utopia, atravessado por uma angústia de prenúncio do fim com que nos identificamos. Há um mundo que morre em 1914, sem se dar conta disso, como sonâmbulos da História, como ecos fora do tempo - como nós?

Viena é hoje a pomposa capital de um império morto. Mas a sua beleza atravessa todos os tempos e todas as derrotas para nos interpelar com a majestade e a força de um Beethoven ou com a delicadeza e a ternura de um Schubert. Eu nunca perco na manhã do dia 1 de janeiro, enquanto todos dormem em casa, o Concerto de Ano Novo no Musikverein, transmitido pela televisão e comentado pelo Júlio Isidro. É um dos momentos de evasão que procuro há muitos anos preservar, como reserva de alegria.

E é destes lugares, como Viena, com um passado que desafia a nossa imaginação, que se fez a Europa. Para o bem e para o mal.

Feliz Ano Novo!

Diplomata e escritor

QOSHE - Concerto de Ano Novo - Luís Castro Mendes
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Concerto de Ano Novo

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26.12.2023

Esta minha crónica, que hoje calha no dia a seguir ao Natal, procurou, por entre os meandros da minha mente e as primeiras páginas dos jornais caídos pelo chão, um tema, uma ideia, um motivo. Esta incómoda confissão busca apoio e alguma justificação no famoso texto de Eça de Queirós, no qual o autor, desesperado por não encontrar assunto para um artigo que prometera, enquanto ouvia à sua porta o chiar das botas do "moço da tipografia", que vinha buscar as suas laudas, acaba por dar uma medonha descasca...ao bei de Tunes! Nada mais lhe ocorrera.

No dia a seguir ao Natal, com os papéis coloridos que embrulharam presentes já amontoados no lixo e a vaga sensação de azia ou de nostalgia do infinito, conforme quisermos interpretar as mensagens do nosso corpo, a azedar-nos a boca, que esperará de nós o leitor? Beis de Tunes para descascar não faltam por esse mundo, mas depois de todo um ano com bem mais sinistras........

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