Lest we should see where we are,
Lost in a haunted wood,
Children afraid of the night
Who have never been happy or good

W.H. Auden, The Age of Anxiety

Contra todas as evidências em contrário,
a alegria

Manuel Gusmão

Há uma ansiedade em nós, que estes tempos de incerteza e precariedade reforçam. Mas se pensarmos bem, todos os tempos foram de ansiedade.

Jorge de Sena ironiza num poema aqueles que no futuro serão capazes de ver como "uma idade de ouro" a época que nos coube viver. O meu pai contou-me a angústia que sentira ao ver-me nascer em 1950, votado que estaria o mundo a uma catástrofe nuclear. Hoje são os mais novos a insurgir-se contra a catástrofe climática, que só não está por vir porque já vive connosco.

A ansiedade é o mecanismo que nos alerta para um perigo iminente, e é essencial à nossa sobrevivência. Mas, na sua patologia, é como um sensor avariado que sinaliza um perigo permanente e inamovível. E nesse modo patológico leva-nos à paralisia, inibindo os movimentos de defesa naturais, a luta ou a fuga.

Não é por acaso que falo de ansiedade, neste tempo de Natal. Há uma ansiedade própria do Natal, feita de expectativas irrealizadas e de memórias por resgatar. Nós não vivemos na Faixa de Gaza, nem nas fronteiras da Ucrânia, mas esse privilégio não afasta de nós a angústia que nos assalta ao assistirmos à abertura dos telejornais com imagens de guerra e de morte. O que aumenta a ansiedade nesta época é o confronto entre a enorme promessa de felicidade que todas as luzes e enfeites nos transmitem e a dificuldade que temos hoje, ao contrário dos tempos mais antigos, de afastar com todas essas luzes o medo da noite.

Como defensor que sou das festas de Natal, gostaria apenas de partilhar com quem tenha a paciência de me ler a angústia própria destas festas, que por vezes nos custa entender donde vem e por que nos pesa agora mais. A promessa de felicidade que toda a beleza do mundo e das mais altas criações humanas oferece expõe-se agora com a desmesura da alegria infinita, que nos desperta o medo de não a merecer, nem conseguir alcançar.

Há uma ansiedade própria do Natal, feita de expetativas irrealizadas e de memórias por resgatar.

Como diz o poema de Schiller, que se tornou hino da Europa com a 9.ª Sinfonia de Beethoven, a alegria é a mais bela cintilação dos deuses, a maior dádiva da vida. E como nos ensinou Espinoza, "a alegria é a passagem para um estado mais potente do próprio ser". Que este pensamento forte afaste a crosta de ansiedade que nos abafa e paralisa, e nos ajude a receber a fagulha dos deuses e a potência humana de nunca nos afastarmos da vida.

Temos tantas razões para ter medo como os nossos remotos antepassados, que se escondiam nas grutas com pavor dos ferozes animais predadores que rondavam na noite. Mas da glória da sua criação ficaram-nos as rochas pintadas nas grutas ou os penedos gravados nos montes, que nos dizem, como Malraux exprimiu numa fórmula magistral, que "é belo que o animal, que sabe que deve morrer, arranque à ironia das nebulosas o canto das constelações e que o lance ao acaso dos séculos".

Por isso o Natal, desde as suas mais remotas origens pré-cristãs, celebra a resistência das luzes à noite, da vida à inescapável morte, da criação humana ao deserto que alastra. Do lado cristão, é a promessa da Redenção. E é do lado da luz e da alegria que fica o nosso lugar, ainda que transportemos connosco, na nossa pobre ansiedade, todo o peso das angústias e misérias do mundo.

Feliz Natal!

Diplomata e escritor

QOSHE - Contra todas as ansiedades, a alegria - Luís Castro Mendes
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Contra todas as ansiedades, a alegria

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19.12.2023

Lest we should see where we are,
Lost in a haunted wood,
Children afraid of the night
Who have never been happy or good

W.H. Auden, The Age of Anxiety

Contra todas as evidências em contrário,
a alegria

Manuel Gusmão

Há uma ansiedade em nós, que estes tempos de incerteza e precariedade reforçam. Mas se pensarmos bem, todos os tempos foram de ansiedade.

Jorge de Sena ironiza num poema aqueles que no futuro serão capazes de ver como "uma idade de ouro" a época que nos coube viver. O meu pai contou-me a angústia que sentira ao ver-me nascer em 1950, votado que estaria o mundo a uma catástrofe nuclear. Hoje são os mais novos a insurgir-se contra a catástrofe climática, que só não está por vir porque já vive connosco.

A ansiedade é o mecanismo que nos alerta para um perigo iminente, e é essencial à nossa........

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