Não será impossível, com suficiente repetição
e um bom conhecimento psicológico do povo,
provar que um quadrado é na realidade um círculo.
(Joseph Goebbels)

Há momentos em que o cronista tropeça, não na falta de assunto, mas na plêiade de assuntos que o afligem, como a todos nós.

Não conseguimos esquecer (e seria bom falar de outra coisa) do elefante no meio da sala que são um milhão de votos contra a nossa democracia e contra a nossa civilização. Um milhão de votos que assumem o racismo e a discriminação como projetos desejáveis e realizáveis.

Dizer que um milhão de pessoas não podem ser todas racistas, xenófobas e homofóbicas, mas que são, sim, vítimas de um sistema político decadente, e que convém, pelo contrário, acarinhá-las, é, como justamente apontava António Guerreiro no Público, passar por cima do caldo de cultura que fomos deixando criar, em que o que é acarinhado é o mais medíocre e grosseiro programa para atrair audiências, é o desprezo da escola pela cultura humanística e a sua instrumentalização por uma ética estritamente individualista e egoísta, virada para o dinheiro como bem e senhor supremo. “O vitelo de ouro continua vivo”, canta Mefistófeles na ópera Fausto: mas agora calcina e destrói tudo em sua volta.

Nesta sociedade, com uma comunicação social dominada pelo poder económico e pelo extremismo ultraliberal, a pregação antissocialista converteu-se na pregação antidemocrática e antissocial, com que nos arengam quotidianamente os nossos comentadores.

Numa sociedade com justas razões para se revoltar, verificamos que a revolta parte, não dos que querem, com justiça, ter mais, mas sim dos que querem, com ressentimento, que os outros, os pobres beneficiários do RMI, os imigrantes e os ciganos, tenham menos.

Como se passou de uma lógica de combate à injustiça a uma lógica de ressentimento e de revanchismo? As dificuldades e profundas desigualdades económicas e o imobilismo de um poder político submetido à misericórdia dos mercados não são, verdadeiramente, o que move no essencial este povo de direita. Move-o uma raiva disseminada contra tudo o que a modernidade trouxe, E, no entanto, não abdicariam de qualquer das vantagens que a modernidade lhes permitiu...

Não vejo como combater este monstro, a não ser seguindo um velho conselho de Sigmund Freud.

Interrogando-se sobre como combater a estupidez e a estreiteza de espírito que alastrava no início da Guerra de 1914-18, respondeu que só a cultura e a arte podem combater esse instinto de morte que nos arrasta para as perseguições e para as guerras, para a incapacidade de ouvir os outros e para a tribalização. Para os extremistas de direita vive-se na nossa tribo e pela nossa tribo. É esse retrocesso que eles prosseguem.

Mas, ai de nós, que podem a cultura e a arte fazer mais do que resistir e defender tudo aquilo que em nós é humano?

Uma nobre preocupação minha sobre “que mundo deixámos às nossas netas?”, foi respondida pela mãe da minha neta luso-francesa com a observação de que nós estávamos ainda bem atrás da França - os Venturas de lá estão já no segundo lugar nas sondagens - e, com a liquidação por Macron dos partidos políticos de direita e de esquerda, cada vez era mais provável a vitória da Sra. Le Pen; quanto à minha neta luso-americana, recordei -me de quando vi, com ela, pela televisão, a invasão do Capitólio e como era bem possível que o promotor daquela invasão viesse a ser de novo o seu presidente.

Não estamos sós nesta desgraça: mas o fracasso do macronismo deveria fazer refletir os que entre nós sonham com um casamento do PS e do PSD, apadrinhado pela Iniciativa Liberal, para combater o elefante no meio da sala. Não é esvaziando a política que se defende a democracia.

QOSHE - O elefante no meio da sala - Luís Castro Mendes
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O elefante no meio da sala

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26.03.2024

Não será impossível, com suficiente repetição
e um bom conhecimento psicológico do povo,
provar que um quadrado é na realidade um círculo.
(Joseph Goebbels)

Há momentos em que o cronista tropeça, não na falta de assunto, mas na plêiade de assuntos que o afligem, como a todos nós.

Não conseguimos esquecer (e seria bom falar de outra coisa) do elefante no meio da sala que são um milhão de votos contra a nossa democracia e contra a nossa civilização. Um milhão de votos que assumem o racismo e a discriminação como projetos desejáveis e realizáveis.

Dizer que um milhão de pessoas não podem ser todas racistas, xenófobas e homofóbicas, mas que são, sim, vítimas de um sistema político decadente, e que convém, pelo contrário, acarinhá-las, é, como justamente apontava António Guerreiro no Público, passar por cima do caldo de cultura que fomos deixando criar, em que o que é........

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