Escrever num jornal em luta pela sua sobrevivência põe a questão de como exprimir a nossa solidariedade.

Parece-me que aquilo que esperam de nós e o melhor que podemos fazer é manter o tom da nossa colaboração e os altos e baixos da nossa escrita, numa continuidade sem sobressaltos.

Estamos a viver um curioso e inesperado inverno, onde uma precipitada antecipação de eleições num sistema político volátil nos coloca a todos naquela incerteza que este jornal, na sua edição de sábado, soube figurar com um imenso ponto de interrogação sobre uma página esbatida.

Vivemos uma viragem histórica que não sabemos para onde nos leva e a única esperança que nos sustém é a consciência da imprevisibilidade da História, que raramente confirmou as previsões de historiadores, economistas e outros videntes do futuro.

As tendências atuais no mundo em que vivemos não indiciam nada de bom e a insegurança dos líderes atuais leva-os crescentemente a atitudes de radicalização dos conflitos e de recusa de compromissos.

Entre nós, com uma direita desnorteada e crescentemente fagocitada pela extrema direita, o centro está a passar para o centro-esquerda e o voto de protesto de uma sociedade cansada e descontente vai sendo captado por uma extrema-direita que vê exemplos e encontra aliados por toda a Europa.

A memória da barbárie de 1945 vai desaparecendo nas novas gerações europeias e, no ano do cinquentenário do 25 de Abril, os nossos jovens não têm qualquer memória do regime fascista (insisto nesta designação) e podem até imaginá-lo como uma idade dourada, como nos alertou recentemente o Presidente da República.

Parece que o estudo da História (como o da Literatura) foi consideravelmente reduzido nos programas do nosso ensino. Edmund Burke, um conservador inteligente, prevenia que “um povo que não conhece a sua História está condenado a repeti-la”. A falta de memória do que fomos torna-nos presa fácil de quaisquer aventureiros. E não nos serve de consolo, que duas das nações mais cultas da Europa, a Alemanha e a Itália, tenham sucumbido, entre as duas guerras, aos mais histéricos charlatães. Os charlatães e aventureiros estarão sempre entre nós, o ponto é quando encontram espaço de afirmação e disponibilidade de crentes.

Mas este problema, como muitos outros que nos afligem, a começar pela Saúde, é comum a muitos países da Europa e a revolta levanta-se nas sociedades mais avançadas: na Alemanha cresce um partido de extrema-direita, agora não contra os judeus, mas contra os imigrantes, bode expiatório de eleição; e na Itália governa um partido neofascista, que abandonou o nacionalismo patético do seu avô Mussolini, para se concentrar, por enquanto, na destruição dos avanços civilizacionais conquistados na área da igualdade dos géneros e do respeito pelas orientações sexuais diferentes.

Ajudaria termos consciência dos progressos reais que nos trouxeram os últimos cinquenta anos, contra a estagnação social e a guerra sem sentido do antigo regime. Ajudaria um módico de moderação numa direita, que ganhou com a troika o gosto da radicalização neo-liberal, contra a sua própria tradição histórica de liberalismo social e de democracia cristã.

Nós, socialistas democráticos, estamos onde sempre estivemos. Ao progresso que trouxemos chamam estagnação. À liberdade que defendemos ousam chamar asfixia, num momento em que a direita liberal é hegemónica nos “media”. Nós estamos aqui, a defender o Estado social que criámos, a propor aos nossos empresários e trabalhadores uma nova estratégia económica, em favor do reforço dos setores mais produtivos e avançados da nossa economia. Estamos onde sempre estivemos: socialismo em liberdade.

Mas eu não estou aqui para fazer campanha eleitoral. Se um judeu polaco achou oportuno, e até vital, ler Proust aos seus companheiros de cela em Auschwitz, porque não poderei eu, numa situação, vamos lá, absolutamente menos dramática do que aquela, falar de flores?


Diplomata e escritor

QOSHE - Para não dizer que não falei de flores - Luís Castro Mendes
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Para não dizer que não falei de flores

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23.01.2024

Escrever num jornal em luta pela sua sobrevivência põe a questão de como exprimir a nossa solidariedade.

Parece-me que aquilo que esperam de nós e o melhor que podemos fazer é manter o tom da nossa colaboração e os altos e baixos da nossa escrita, numa continuidade sem sobressaltos.

Estamos a viver um curioso e inesperado inverno, onde uma precipitada antecipação de eleições num sistema político volátil nos coloca a todos naquela incerteza que este jornal, na sua edição de sábado, soube figurar com um imenso ponto de interrogação sobre uma página esbatida.

Vivemos uma viragem histórica que não sabemos para onde nos leva e a única esperança que nos sustém é a consciência da imprevisibilidade da História, que raramente confirmou as previsões de historiadores, economistas e outros videntes do futuro.

As tendências atuais no mundo em que vivemos não indiciam nada de bom e a insegurança dos líderes atuais leva-os crescentemente a atitudes de radicalização dos conflitos e........

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