Já anteriormente tínhamos abordado, nesta coluna, os riscos de natureza estratégica que a progressão do terrorismo jihadista na África Ocidental, no Sahel e no Golfo da Guiné, coloca à segurança africana e europeia. A esta situação, acrescentam-se as dificuldades na contenção da geopolítica da Federação Russa em África, que, no Sahel, é particularmente agressiva para os países ocidentais. Esta é uma realidade relativamente recente, com o uso de companhias militares privadas (CMP) para a prossecução, pela Rússia, de objetivos políticos, estratégicos e económicos.

A existência de CMP é uma realidade que já tem alguns anos, em que alguns países ocidentais também as possuem, mas que têm, de um modo geral, um perfil de operação relativamente diferente das CMP russas, em especial do famigerado Wagner. Este assunto, da utilização de CMP em operações militares na chamada Guerra Híbrida, merecerá uma análise mais detalhada numa outra ocasião.

Começou a ser pública a existência de “mercenários” russos em África, algures entre o final de 2017 e inícios de 2018, em especial na República Centro-Africana, com expansão no mesmo período à Líbia, a Moçambique e ao Sudão. Foi uma transição entre o conceito de conselheiros militares, que já vinha dos tempos soviéticos, para operadores militares privados, num conceito algo diferente dos “tradicionais” mercenários, que tiveram, em tempos anteriores, presença em África. Em termos muito sintéticos o modelo de atuação do Grupo Wagner assenta em três pilares de operação e que são: operações da sua componente militar; uma rede de influências políticas; e uma rede de negócios que assegura o financiamento para os outros dois pilares.

No início de 2020 deu-se uma expansão da atividade russa aos países do Sahel, começando pelo Mali, seguido do Burkina Faso e terminando, mais recentemente, no Níger. Uma das características destas atividades é que procuram criar narrativas antiocidentais com alguma robustez, muito focadas na França, como ex-potência colonial, mas não só. A Wagner tem-se constituído como um instrumento da política externa russa, com quatro objetivos fundamentais relativamente aos países africanos: cortar laços de contacto e cooperação com os países ocidentais; ser um parceiro credível e indispensável perante as autoridades locais; garantir contratos de venda de armamento e outros equipamentos; e conseguir oportunidades de natureza económica em áreas-chave, como a mineração e a exploração de madeiras, entre outras. Atuam de acordo com o que tem sido chamado o “African Playbook”, que desenha um modus operandi formatado, que tem obtido muito sucesso e que visa atingir objetivos de duas naturezas distintas: de natureza geopolítica da Federação Russa e financeiros, de natureza privada, com acesso a recursos de exploração rápida. Para atingir estes objetivos estratégicos operam em três linhas de ação: condução de campanhas políticas e comunicacionais (fazendo uso da desinformação e notícias falsas); serem ressarcidos financeiramente com base em concessões mineiras e outras de impacto financeiro imediato; e ações de cooperação militar e condução de operações militares, em prol do estado hospedeiro.

Outro aspeto relevante tem sido a suspeita, muito fundada, de que a Federação Russa, através da Wagner, tem patrocinado uma sequência de golpes de Estado nos países da região, em especial no Sahel, que levaram ao poder Juntas Militares pró-russas e antifrancesas, criando uma desestabilização regional e prejudicando os mecanismos de combate ao terrorismo jihadista radical que estavam implementados. No caso concreto do Mali levou mesmo à retirada da missão das Nações Unidas, das forças da Operação Barkane e da Operação Multinacional Takuba, estas duas últimas de combate ao terrorismo.

Com a crise de 2023, entre o Wagner, liderada por Prigozhin, e o presidente Vladimir Putin, no âmbito da guerra na Ucrânia, o Wagner, como CMP, foi integrada no Ministério da Defesa russo e diminuiu o seu perfil operacional em África. Embora não tivesse desaparecido, houve uma operação de cosmética, que levou ao aparecimento de uma nova organização, o Africa Corps, que foi substituindo a marca Wagner em África, em especial no Sahel. No entanto, o modus operandi desta organização é, em tudo, semelhante à CMP Wagner.

No Sahel e na República Centro-africana (RCA), as CMP russas têm combatido ao lado das forças locais, seja contra os diversos grupos terroristas, no caso do Sahel, seja contra os diversos grupos armados no caso da RCA, mas com resultados muito insuficientes, fruto da violência que estas operações têm manifestado contra as populações locais, em especial quando conduzidas unilateralmente por forças russas. No caso do Mali, esta violência tem provocado muitas baixas entre as populações civis das áreas controladas pelos grupos terroristas, levando a que as populações tenham vindo a apoiar cada vez mais os movimentos jihadistas, com um aumento significativo da atividade terrorista, assunto já aqui abordado, num artigo pretérito.

A importância do continente africano nas ambições geopolíticas russas é enorme, a fim de retirar poder ao Ocidente, em especial aos países europeus e aos Estados Unidos, no sentido de construir uma Ordem Internacional diferente, multipolar e contrária à designada ordem unipolar, liderada pelo Ocidente (leia-se os EUA). Neste processo, a Rússia é acompanhada pela China, pelo Irão e pela Coreia do Norte, imbuídos do mesmo objetivo, mas com práticas diferenciadas em África.

O relacionamento entre os países ocidentais e os países do Sahel, sofreu um novo revés com a expulsão das forças militares americanas do Níger, onde tinham uma Base de drones que era fundamental na produção de informação sobre os grupos terroristas que controlam partes relevantes do Mali, do Burkina Faso e do Níger.

Os países africanos, como todos os outros países, são livre de escolherem os seus parceiros de relação bilateral ou multilateral, mas o facto é que, quando estabelecem relacionamentos militares com a Rússia, a imediata ostracização dos ocidentais é, de um modo geral, imediata. Os países da UE e os EUA continuam a ser, mesmo nestas condições, os principais financiadores da ajuda ao desenvolvimento. A Rússia, pelo contrário continua a ser um elemento explorador de recursos naturais em troca de garantias de segurança, onde não tem mostrado eficácia, pelo menos na luta contra o terrorismo.

Acresce que a parceria Rússia-Irão, que se consolidou com a guerra na Ucrânia, poderá ser estendida a África, que, a ocorrer na região do Sahel, poderá levar ao posicionamento de sistemas de mísseis e drones em zonas que permitem alcançar os países do sul da Europa, Portugal incluído. Este é um elemento central da geopolítica russa, o controlo destes países, para degradar a segurança europeia em situações de crise futura, seja através da ameaça militar direta, seja através de proporcionar condições para imigração ilegal em larga escala, como aconteceu na guerra da Síria.

É tempo de os europeus e os americanos refinarem estrategicamente as suas relações com os países africanos, essencialmente demonstrando que a cooperação com a Rússia, através das CMP, será altamente prejudicial para a segurança desses mesmos países, a muito curto prazo. Uma relação estratégica, saudável, coerente e objetiva, com África é fundamental para a segurança da Europa e exige atenção imediata.

QOSHE - A África Ocidental e o Sahel - os riscos estratégicos para a Europa e a falha na contenção da Rússia - Marco Serronha
menu_open
Columnists Actual . Favourites . Archive
We use cookies to provide some features and experiences in QOSHE

More information  .  Close
Aa Aa Aa
- A +

A África Ocidental e o Sahel - os riscos estratégicos para a Europa e a falha na contenção da Rússia

14 0
20.04.2024

Já anteriormente tínhamos abordado, nesta coluna, os riscos de natureza estratégica que a progressão do terrorismo jihadista na África Ocidental, no Sahel e no Golfo da Guiné, coloca à segurança africana e europeia. A esta situação, acrescentam-se as dificuldades na contenção da geopolítica da Federação Russa em África, que, no Sahel, é particularmente agressiva para os países ocidentais. Esta é uma realidade relativamente recente, com o uso de companhias militares privadas (CMP) para a prossecução, pela Rússia, de objetivos políticos, estratégicos e económicos.

A existência de CMP é uma realidade que já tem alguns anos, em que alguns países ocidentais também as possuem, mas que têm, de um modo geral, um perfil de operação relativamente diferente das CMP russas, em especial do famigerado Wagner. Este assunto, da utilização de CMP em operações militares na chamada Guerra Híbrida, merecerá uma análise mais detalhada numa outra ocasião.

Começou a ser pública a existência de “mercenários” russos em África, algures entre o final de 2017 e inícios de 2018, em especial na República Centro-Africana, com expansão no mesmo período à Líbia, a Moçambique e ao Sudão. Foi uma transição entre o conceito de conselheiros militares, que já vinha dos tempos soviéticos, para operadores militares privados, num conceito algo diferente dos “tradicionais” mercenários, que tiveram, em tempos anteriores, presença em África. Em termos muito sintéticos o modelo de atuação do Grupo Wagner assenta em três pilares de operação e que são: operações da sua componente militar; uma rede de influências políticas; e uma rede de negócios que assegura o financiamento para os outros dois pilares.

No início de 2020 deu-se uma expansão da atividade russa aos países do Sahel, começando pelo Mali, seguido do Burkina Faso e terminando, mais recentemente, no........

© Diário de Notícias


Get it on Google Play