Nas últimas semanas temos assistido a intensos debates em diversos fóruns, desde a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque, passando por Bruxelas e até aos Media internacionais, sobre a questão da implementação de um cessar-fogo ou de uma pausa humanitária em Gaza. E a discussão tem incidido tanto nos objetivos a atingir, como no próprio conceito de cada uma das expressões. Mas vamos primeiro aos conceitos e depois aos objetivos de natureza operacional, estratégica ou política, das partes em conflito, para se aquilatarem das possibilidades de sucesso do fim/pausa nas operações militares.

Uma das dificuldades observada durante o debate foi a de encontrar referências doutrinárias sobre estes termos, outra foi haver diferentes interpretações sobre eles. Assim, socorremo-nos do Manual de Orientações para Mediação de Cessar-fogos, elaborado pelo Departamento de Assuntos Políticos e Construção da Paz da ONU, que caracteriza de forma extensiva, e bem fundada, estas situações, chamando, no entanto, a atenção que poderá haver outras abordagens a esta problemática.

Um cessar-fogo definitivo (ou permanente) é normalmente o resultado de um processo político bem-sucedido, no qual as partes chegaram a um acordo sobre todos os aspetos das negociações de paz. Os cessar-fogos definitivos estão intrinsecamente ligados às dimensões política, social e económica de um acordo de paz mais amplo. Num cessar-fogo há a expectativa que ele incorpore o seguinte: seja um acordo formalizado por escrito entre as partes; haja definição do propósito do cessar-fogo; constem datas e prazos; quais são as atividades militares permitidas e proibidas; quais as formas de monitorização e verificação do fim das atividades militares; estabelecer alguns procedimentos para resolver a disputa e tentar diminuir a tensão entre as partes. Os cessar-fogos podem também ser definidos pela finalidade, nomeadamente: humanitária, geográfica, sectoriais e temporários. Podem ainda existir cessar-fogos informais, de facto e impostos, estes últimos através de resoluções do Conselho de Segurança da ONU, ou de outras organizações de segurança regionais ou sub-regionais. Concluímos assim que a pausa humanitária é um cessar-fogo com a finalidade específica da interrupção nos combates, para executar ações humanitárias e, sendo um cessar-fogo temporário, pode durar apenas horas ou vários dias.

Tendo em consideração o conceito de cessar-fogo permanente, aqui enunciado, não será difícil de perceber que não existem, neste momento, no conflito que se desenrola entre Israel e o Hamas em Gaza, as condições necessárias para que as partes o possam aceitar e assinar. Só serão possíveis, em especial do lado de Israel e nesta altura da guerra, pausas humanitárias para efeitos de apoio humanitário às populações e libertação/troca de reféns e prisioneiros, aliás em linha com o que aconteceu há umas semanas.

Vejamos agora os objetivos políticos, estratégicos e operacionais militares das partes em conflito, nomeadamente o Estado de Israel e o Hamas, organização não estatal, de natureza terrorista que exerce o poder político na Faixa de Gaza. Relativamente a Israel, o seu governo enunciou como objetivo político e estratégico central a erradicação do Hamas, especialmente a sua componente armada, de modo que não voltem a acontecer atentados semelhantes ao de 7 de outubro passado, em território israelita, que deu origem ao atual conflito. Embora o Hamas não tenha expressado claramente os seus objetivos políticos e estratégicos, consegue-se inferir que passam essencialmente pela sua sobrevivência política em Gaza, mantendo a sua infraestrutura armada de modo a continuar a contribuir para o seu desiderato político fundador, que é a destruição do Estado Judaico. Em termos operacionais militares, os objetivos de Israel traduzem-se na completa destruição da componente armada do Hamas, que passam pela captura/destruição da sua estrutura de comando e controlo, a destruição/inutilização das redes de túneis e das suas principais capacidades ofensivas e unidades operacionais, nomeadamente os sistemas de lançamento de foguetes e a sua infraestrutura de produção de capacidades de natureza militar. O Hamas, em termos operacionais, visa retardar a consecução dos objetivos operacionais das Forças de Defesa de Israel (IDF), conduzindo operações militares no Norte de Gaza, muito centradas na sua capital e zonas circundantes e, a Sul, na cidade de Khan Younis e as suas zonas limítrofes. Utiliza, igualmente, a gestão dos reféns capturados a 7 de outubro como o seu grande ativo estratégico, um pouco como o seu seguro de vida, para tentar parar a guerra antes de Israel atingir os seus objetivos, atrás enunciados. O Hamas vive, e combate, misturado com a população palestina de Gaza, dificultando a Israel a discriminação dos alvos exclusivamente militares, o que tem provocado um grande número de mortes civis, denegrindo a imagem externa do estado hebraico. Esta situação tem provocado grande pressão internacional sobre Israel para diminuir a intensidade dos bombardeamentos, ou mesmo parar/suspender as operações militares para ser prestada ajuda humanitária às populações locais. É neste contexto, e com a posse de 120 reféns, que o Hamas joga a sua sobrevivência, tentando parar a guerra. É nesse sentido que devemos compreender a narrativa do Hamas que só liberta os reféns, após um cessar definitivo das hostilidades. Por seu lado, Israel, afirma que não para as operações militares até à consecução do seu objetivo político da destruição total do Hamas na Faixa de Gaza, só admitindo pausas humanitárias, se houver lugar à libertação/troca de reféns e prisioneiros.

Nesta situação de antagonismo completo, só a pressão internacional sobre as partes poderá conduzir a que venham a flexibilizar algumas posições, que permitam prestar ajuda humanitária as populações em elevada situação de carência, libertando e trocando reféns e prisioneiros e que se abra uma janela para o início de (eventuais) conversações políticas que levem, essas sim, a um cessar definitivo das hostilidades. No entanto é improvável que Israel venha a negociar o que quer que seja com o Hamas pois, se o quer destruir, é pouco crível que venha a negociar com ele uma solução política para o pós-guerra. No fundo, a comunidade internacional pode tentar aconselhar ou impor, a partir de Nova Iorque, ou de outro lado, um cessar-fogo, mas só as partes em conflito o podem concretizar. Entretanto a mediação internacional irá continuar, com diversas geometrias, tentando conter o conflito em curso ou amenizar os seus efeitos. Tarefa difícil, pois, tudo leva a crer este é o tempo da guerra e não de paz.

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Cessar-fogo vs. pausa humanitária em Gaza - o que está em causa e o que é possível

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31.12.2023

Nas últimas semanas temos assistido a intensos debates em diversos fóruns, desde a sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova Iorque, passando por Bruxelas e até aos Media internacionais, sobre a questão da implementação de um cessar-fogo ou de uma pausa humanitária em Gaza. E a discussão tem incidido tanto nos objetivos a atingir, como no próprio conceito de cada uma das expressões. Mas vamos primeiro aos conceitos e depois aos objetivos de natureza operacional, estratégica ou política, das partes em conflito, para se aquilatarem das possibilidades de sucesso do fim/pausa nas operações militares.

Uma das dificuldades observada durante o debate foi a de encontrar referências doutrinárias sobre estes termos, outra foi haver diferentes interpretações sobre eles. Assim, socorremo-nos do Manual de Orientações para Mediação de Cessar-fogos, elaborado pelo Departamento de Assuntos Políticos e Construção da Paz da ONU, que caracteriza de forma extensiva, e bem fundada, estas situações, chamando, no entanto, a atenção que poderá haver outras abordagens a esta problemática.

Um cessar-fogo definitivo (ou permanente) é normalmente o resultado de um processo político bem-sucedido, no qual as partes chegaram a um acordo sobre todos os aspetos das negociações de paz. Os cessar-fogos definitivos estão intrinsecamente ligados às dimensões política, social e económica de um acordo de paz mais amplo. Num cessar-fogo há a expectativa que ele incorpore o seguinte: seja um acordo formalizado por escrito entre as partes; haja definição do propósito do cessar-fogo; constem datas e prazos; quais são as atividades militares permitidas e proibidas; quais as formas........

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