Homem declarado inocente nos EUA após 48 anos preso por homicídio, título de uma notícia que quase parece, cinicamente, uma boa história de Natal. Inicialmente condenado à morte, por um crime alegadamente cometido por si em 1975, viu entretanto a pena ser comutada em prisão perpétua, tendo sido libertado em julho passado, e agora declarado inocente pelo tribunal. Após 48 anos de prisão. Tornou-se no homem mais tempo encarcerado nos Estados Unidos por um crime que não cometeu.

A história norte-americana é um fiel retrato de como a pena de morte e as penas perpétuas são absolutamente ineficazes no controlo da criminalidade. Subsistem apenas como expressão de vingança e de castigo e como tal são construídas e cultivadas como ideal justiceiro, desde logo na expressão que lhes é dada pelo cinema e pela televisão. Mas não somente as penas -- todo o sistema penal é uma réplica da sua própria emulação como prova de estafeta, televisionada, de histórias de sangue e de vingança.

Tudo o que seja menos do que a morte ou a prisão perpétua, ensinam as séries norte-americanas, é um falhanço rotundo da Polícia, do Ministério Público, da sociedade. Tudo o que não seja uma acusação e uma condenação é fraude, é incapacidade, é injustiça, é o sistema a frustrar-se, corrompido ou insensível ao sofrimento. Qualquer acesso a um advogado e à representação judiciária é, naturalmente, uma prova plena de culpa e de vontade de se eximir à devida justiça. Bem avisam os detetives, pelo menos os que correspondem ao ideal 16:9, perante essas segundas vítimas que são todos os suspeitos:

-- É melhor falar agora, porque quando chamar um advogado já não o podemos ajudar...

Num modelo em que juízes e procuradores podem ser nomeados livremente, em diversos estados, por titulares de cargos políticos; em que o acesso à defesa ou à proteção de direitos, mesmo de crianças ou em diversas condições de fragilidade, é apenas garantida por caridade e como caridade; em que sentenças de pena de morte podem ser fundamentadas apenas no preenchimento de um formulário A4 de cruzes... Com tanto para discutir e ponderar no funcionamento da justiça nos Estados Unidos -- e tanto potencial narrativo --, a história que se conta e quer sempre recontar é a de como o heroísmo policial e do Ministério Público vai vencer a mentira de que se reveste um qualquer suspeito, exista ela ou não, e vai encontrar um culpado, exista ele ou não.

Glynn Simmons, 70 anos, negro, preso no Oklahoma durante 48 anos, 1 mês e 18 dias por um crime que não cometeu. Libertado em julho passado, como se escreve no The New York Times, "diagnosticado com um cancro, tem vivido de doações feitas através de uma plataforma de crowdfunding". Ah, glória ao enredo, ao plot, a estes guionistas da vida real! Melhor seria quase impossível.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

QOSHE - 48 anos, 1 mês e 18 dias - Miguel Romão
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48 anos, 1 mês e 18 dias

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22.12.2023

Homem declarado inocente nos EUA após 48 anos preso por homicídio, título de uma notícia que quase parece, cinicamente, uma boa história de Natal. Inicialmente condenado à morte, por um crime alegadamente cometido por si em 1975, viu entretanto a pena ser comutada em prisão perpétua, tendo sido libertado em julho passado, e agora declarado inocente pelo tribunal. Após 48 anos de prisão. Tornou-se no homem mais tempo encarcerado nos Estados Unidos por um crime que não cometeu.

A história norte-americana é um fiel retrato de como a pena de morte e as penas perpétuas são absolutamente ineficazes no controlo da criminalidade. Subsistem apenas como expressão de vingança e de castigo e como tal são construídas e........

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