Cinquenta anos depois do 25 de abril, num tempo em que a integração europeia é plena e exitosa, mas está ameaçada como nunca antes, os dois maiores partidos portugueses resolvem apresentar às próximas eleições europeias listas de candidatos de onde se retiram duas características: pessoas que não têm uma vida de trabalho conhecida fora da atividade político-partidária e pessoas cujo percurso é aparecer na televisão a conversar sobre o trabalho de outros. Há, nessas listas, pessoas estimáveis, competentes e que demonstraram qualidades no seu serviço público - mas que sinal é este, que PSD e PS dão, de que o Parlamento Europeu parece ser apenas um espaço de recuo ou de recompensa pelo trabalho político-partidário?

Sou especialmente crítico em relação à eternização em cargos políticos das mesmas pessoas, mesmo quando circulando entre funções, como aliás já escrevi muitas vezes. Impede a renovação fundamental, reduz a diversidade de perspetivas, aumenta a dependência dos próprios eleitos das estruturas partidárias. É absolutamente legítimo entender-se que a existência de políticos profissionais é um traço da atualidade, impossível sequer de alterar. Mas a temporalidade no exercício do poder, de qualquer poder, é a melhor garantia da sua própria valia e sentido, e uma expressão natural da democracia. E a melhor interpretação do sentido de um mandato não é apenas a de uma sujeição regular a eleições. Deve ser também a da limitação, se não a de autolimitação, de as mesmas pessoas assumirem cargos sucessivos, numa espiral de honras públicas que afasta os mais novos, os mais dissonantes, os menos grupais e afasta especialmente a maioria dos eleitores de se confrontarem com novas vozes, novos protagonistas e novas visões, sendo mais facilmente seduzidos pela demagogia populista que aí está.

E, sim, os partidos têm eles próprios de funcionar de outra forma, menos tribal, menos aprisionável por caciques e donos de votos, menos dependente de proximidades ocasionais de lideranças. Abrir o seu debate interno e torná-lo atraente e proveitoso. Saber usar o mundo virtual e as possibilidades que as novas ferramentas tecnológicas permitem para a formação cívica, a participação e a justificação e avaliação de políticas e de medidas.

Os primeiros 50 anos após o 25 de abril criaram a nossa democracia institucional, feita de partidos políticos que se construíram através do território, em estruturas de justificação geográfica. Os próximos 50 anos irão certamente exigir outros modelos, em que a capacidade de intervenção das pessoas no contexto de um partido político não se circunscreva desde logo pela sua residência, à semelhança, afinal, do que é hoje o mundo e a vida das pessoas. Somos hoje muito mais do que o local onde estamos e a democracia partidária precisa de o reconhecer, integrar e devolver.

QOSHE - Cinquenta anos passados, cinquenta anos futuros - Miguel Romão
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Cinquenta anos passados, cinquenta anos futuros

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26.04.2024

Cinquenta anos depois do 25 de abril, num tempo em que a integração europeia é plena e exitosa, mas está ameaçada como nunca antes, os dois maiores partidos portugueses resolvem apresentar às próximas eleições europeias listas de candidatos de onde se retiram duas características: pessoas que não têm uma vida de trabalho conhecida fora da atividade político-partidária e pessoas cujo percurso é aparecer na televisão a conversar sobre o trabalho de outros. Há, nessas listas, pessoas estimáveis, competentes e que demonstraram qualidades no seu serviço público - mas que sinal é este, que PSD e PS dão, de que o Parlamento Europeu parece ser apenas um espaço de recuo ou de recompensa pelo trabalho........

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