1. Anda há meses um canal de televisão e um jornal, do mesmo grupo, a destruir um cidadão e ninguém parece importar-se muito com isso. Desapareceu uma senhora, grávida, e o seu alegado namorado foi constituído arguido nesse inquérito judicial. Está, parece, em casa, com a medida de coação decretada de permanência na habitação. Não foi sequer acusado pelo Ministério Público, muito menos julgado. Não há corpo e a história, aparentemente sórdida, é muito triste. O canal filma insistentemente a família da senhora desaparecida, recolhe as mesmas declarações em loop, eivadas do mesmo basismo e vontade de aparecer de repórter e de declarante, reproduz em direto retroescavadoras e mergulhadores em busca de um corpo. Entretanto, parece que a realidade afirmada muda radicalmente, mas nada muda. E o homem, homicida ou não, continua a ser vilipendiado pelo canal e pelo jornal, também ele agora morto em vida, culpado ou não. É filmado à má fila num momento em que saiu de casa, o mundo dos cafés conhece o seu nome, a sua aparência e a da sua casa, a sua existência e os recantos íntimos da sua vida. Nota-se que só pode haver necessariamente ali um intuito ad personam de aviltar e condenar antes dos tribunais, a coberto da liberdade de imprensa. Pode ser culpado do crime, talvez. Ou não. A mim, como professor de Direito, advogado, jornalista e cidadão, só me arrepia esta perseguição televisionada como justiça, como justiça que funciona e decide em alternativa ao sistema judicial. Para alguns, não há segredo de justiça nem presunção da inocência. Mas, pelos vistos, está tudo bem. A Ordem dos Advogados e o Ministério Público, aparentemente, também acham bem. Até lhes calhar a eles.

2. Dados agora publicados pelo jornal Público, relativos ao novel Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), a estrutura anticorrupção criada pelo Governo já em 2021, indicam que, em 2023, a “Administração local concentra mais de metade de suspeitas de corrupção: os municípios assumem um claro destaque como entidades mais associadas a procedimentos criminais com a presença de matéria criminal (...). Significa que um em cada três procedimentos com a presença de matéria probatória está associado ao exercício de actividade municipal”. Nada de novo, portanto: essa é a estatística habitual em Portugal há décadas, sem grande clamor público e sem nenhuma alteração dos típicos e legais procedimentos autárquicos.
Mas, por outro lado, note-se: o MENAC “continua a justificar a sua fraca actividade com a dificuldade em recrutar funcionários, só tendo conseguido preencher metade dos 29 lugares abertos. Por isso, do orçamento disponível para 2023 de dois milhões de euros apenas gastou 750 mil euros, o equivalente a uma taxa de execução de 37,2%.” Deve ser, portanto, a única estrutura da Administração que não se queixa de falta de dinheiro, até porque não consegue despender o que tem atribuído. O que se nota, aliás: há uma área do seu website, dita de apresentação de denúncias, que mostra a mensagem “Um novo espaço disponível - brevemente - que apela à participação de todos os cidadãos”. Ora, como se sabe, receber um email é algo que requer grande estrutura, muitos funcionários e farto orçamento... especialmente quando o mais natural será remetê-lo de imediato, por regra, para o Ministério Público e para a Polícia Judiciária, as únicas entidades com competência de investigação do eventual crime de corrupção.

QOSHE - Duas histórias breves sobre justiça e direito - Miguel Romão
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Duas histórias breves sobre justiça e direito

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03.05.2024

1. Anda há meses um canal de televisão e um jornal, do mesmo grupo, a destruir um cidadão e ninguém parece importar-se muito com isso. Desapareceu uma senhora, grávida, e o seu alegado namorado foi constituído arguido nesse inquérito judicial. Está, parece, em casa, com a medida de coação decretada de permanência na habitação. Não foi sequer acusado pelo Ministério Público, muito menos julgado. Não há corpo e a história, aparentemente sórdida, é muito triste. O canal filma insistentemente a família da senhora desaparecida, recolhe as mesmas declarações em loop, eivadas do mesmo basismo e vontade de aparecer de repórter e de declarante, reproduz em direto retroescavadoras e mergulhadores em busca de um corpo. Entretanto, parece que a realidade afirmada muda radicalmente, mas nada muda. E o homem, homicida ou não, continua a ser vilipendiado pelo........

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