Comecei por notar o movimento numa série de bairros lisboetas, visivelmente habitados por titulares de privilégios herdados - da habitação ao emprego, passando pela Educação. Sempre que a mobilidade o permite, as pessoas que observo andam lado a lado, embora também não faltem situações em que o ritmo da caminhada é ditado pelo empurrar de uma cadeira de rodas.

Percebe-se facilmente, pela dinâmica servil de uma das partes, que estamos diante de uma relação financeiramente estabelecida. Sobressai, igualmente, a cada dupla com que me cruzo, a sua composição étnico-racial e o “choque” de nacionalidades. Basicamente, quem vejo a servir tem, invariavelmente, a pele negra e/ou o sotaque brasileiro; quem é servido encaixa numa imagem envelhecida das antigas damas da elite colonial.

Fico com a sensação desconfortável de estar a presenciar cenas de um filme do Estado Novo e, por mais que procure, não consigo encontrar afecto nessas interacções. Nem nos gestos, nem nas palavras.

Pelo contrário, deparo-me quase sempre com uma atitude de sobranceria - por vezes verbalizada - que demonstra, para quem à volta quiser ver e ouvir, que existe uma voz de comando e outra de submissão. Pode ser no momento de pagar a conta no supermercado, na escolha das revistas na tabacaria da esquina, ou no calcorrear de passeios minados de obstáculos. O que tresanda sempre é o constrangimento, nos olhos cabisbaixos e semblante resignado, de quem carrega sacos com compras, e tem por encargo descortinar o próximo capricho da madame.

Vejo-as quotidianamente no meu perímetro de acção, mas não as descubro no universo noticioso que, nos últimos tempos, a reboque de manifestações de ódio contra imigrantes, foi produzindo e reproduzindo estatísticas sobre a importância económica dos fluxos migratórios.

Fala-se nos milhões de lucros que garantem à Segurança Social, na aceitação de trabalhos que - dizem os patrões - evita o colapso de alguns sectores de actividade, e, de utilidade em conveniência: assim se constrói a narrativa do “valor” dos imigrantes na nossa sociedade.

São braços que nos alimentam - escreve-se -, trabalhadores que não deixam o país parar - acrescenta-se -, sem que haja uma tentativa de aprofundamento: a que custo de vida?

Leio, entre reportagens, uma directora de Recursos Humanos de uma empresa de produção e distribuição de produtos hortofrutícolas, apregoar que “são todos muito bem-vindos”.

Serão? E quando, em vez de se limitarem a ser explorados, os imigrantes exigirem ser mais bem remunerados? E quando, legitimamente, começarem a ambicionar e a disputar os lugares que os portugueses desejam? Aqueles que, em vez de braços, exigem cérebro? Continuarão a ser “bem-recebidos”, quando sabemos que, mesmo entre cidadãos nacionais, subsistem diferenças grosseiras no acesso a direitos fundamentais em função da cor de pele?

A presença de pessoas imigrantes em Portugal tem de ser defendida como um Direito Humano inegociável - ao qual têm de corresponder condições de vida tão dignas quanto aquelas que desejamos para nós próprios, seja qual for o nosso estatuto -; e não “tolerada” como uma jogada oportunista de maximização de lucros.

Importa, mais do que nunca, olhar para aquilo que Portugal tem para oferecer a quem deu tanto, e continua a dar, pelo seu desenvolvimento, conceito que vai muito além da economia.

Façamos esse exercício sem perder de vista a bagagem nacional nesta matéria: antes das Independências, as autoridades lusas, a exemplo de outros estados europeus, iniciaram “uma política de recrutamento no interior do seu Império Colonial, para suprir necessidades de mão-de-obra na metrópole”. Foi assim que, de 1955 a 1973, chegaram ao país 87 mil cabo-verdianos, entre trabalhadores, estudantes, pessoas em trânsito para outros destinos e permanências de curta duração.

Os dados, presentes em “Comunidade(s) cabo-verdiana(s): as múltiplas faces da imigração cabo-verdiana”, indicam também que a criação de uma força de trabalho desde o Ultramar se concretizou, sobretudo, a partir dos Anos 60, através de “cartas de chamada”.

Todos “bem-vindos”, portanto, ou não estivesse Portugal a sofrer as dores da emigração, que crescia como resposta às privações, Guerra Colonial e austeridade do regime fascista de Salazar.

“Os trabalhadores cabo-verdianos inseriram-se nos sectores da economia que, à época, mais carentes estavam de mão-de-obra, designadamente, no sector da construção civil e obras públicas e, de forma maioritária, concentraram-se na Área Metropolitana de Lisboa”, lê-se ainda nessa publicação, promovida pela Observatório da Imigração.

Debruçando-se especificamente sobre as mulheres cabo-verdianas, a pesquisa assinala que embora a sua presença fosse residual, “já se verificava uma especialização no trabalho doméstico”, a dias ou como empregadas internas.

“Há muita coisa que se passou nessa altura, e que deixou marcas que a gente não consegue esquecer”, contava-me, em 2020, Maria Patriarca, uma das pessoas que desembarcou em Lisboa entre vagas migratórias, já depois do 25 de Abril.

“Éramos escravas autênticas, sem hora para deitar, mas sempre para levantar. Eu só podia sair aos domingos, às 17.00 horas, e tinha de entrar de novo às 19.00”, recordou, revisitando um pesadelo de domingo à tarde. “Cheguei um pouco depois das 19.00 horas, porque tinha ido à Feira Popular com as minhas primas. A senhora estava na janela, viu-me lá de cima, mas não abriu a porta. Deixou-me a dormir na escada.”

Enquanto tudo isso acontecia, Maria continuou a ser tão necessária, quanto descartável. E antes, como agora, a economia não deixou de funcionar, demonstrando que poder e humanidade não avançam de mãos dadas.


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Não é (só) a economia, estúpido!

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07.02.2024

Comecei por notar o movimento numa série de bairros lisboetas, visivelmente habitados por titulares de privilégios herdados - da habitação ao emprego, passando pela Educação. Sempre que a mobilidade o permite, as pessoas que observo andam lado a lado, embora também não faltem situações em que o ritmo da caminhada é ditado pelo empurrar de uma cadeira de rodas.

Percebe-se facilmente, pela dinâmica servil de uma das partes, que estamos diante de uma relação financeiramente estabelecida. Sobressai, igualmente, a cada dupla com que me cruzo, a sua composição étnico-racial e o “choque” de nacionalidades. Basicamente, quem vejo a servir tem, invariavelmente, a pele negra e/ou o sotaque brasileiro; quem é servido encaixa numa imagem envelhecida das antigas damas da elite colonial.

Fico com a sensação desconfortável de estar a presenciar cenas de um filme do Estado Novo e, por mais que procure, não consigo encontrar afecto nessas interacções. Nem nos gestos, nem nas palavras.

Pelo contrário, deparo-me quase sempre com uma atitude de sobranceria - por vezes verbalizada - que demonstra, para quem à volta quiser ver e ouvir, que existe uma voz de comando e outra de submissão. Pode ser no momento de pagar a conta no supermercado, na escolha das revistas na tabacaria da esquina, ou no calcorrear de passeios minados de obstáculos. O que tresanda sempre é o constrangimento, nos olhos cabisbaixos e semblante resignado, de quem carrega sacos com........

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