Quem é que vou ouvir? A cada reunião de planeamento editorial, aprovado o tema e definido o ângulo de abordagem, essa era a pergunta que se impunha para me lançar ao terreno. Dependendo do trabalho, muitas vezes partia em busca de casos reais para ilustrar os factos, e dava-lhes enquadramento a partir de um olhar especializado.

Significa que antes da decisão sobre quem ouvir, impunha-se reconhecer quem deveria ser ouvido, ou até mesmo quem não poderia deixar de ser ouvido.

A partir dessa experiência, que me acompanhou durante quase 20 anos de jornalismo, é-me evidente que uma proposta jornalística sobre reparações históricas - em que se aborda o legado colonial, e o dever de Portugal “pagar os custos” dos crimes cometidos nos territórios que ocupou -, tem de incluir a perspectiva de quem foi colonizado.

Não o fazer não é uma simples escolha editorial: é uma prática racista, institucionalmente enraizada para invisibilizar e silenciar pessoas negras, reduzindo-nos à condição de objectos de análise e nunca de sujeitos cognoscentes. Uma continuidade colonial, portanto.
Só assim se explica que o espaço de discussão sobre as reparações esteja monopolizado por pessoas brancas. Conseguem imaginar o que seria se os debates sobre o “estatuto de dona de casa” das últimas semanas apresentassem apenas vozes masculinas?

Por mais que os diversos órgãos de comunicação social gostem de se escudar na liberdade das escolhas editoriais, como explicam que a discussão sobre a devolução de obras de arte, enquadrável na temática das reparações, exclua Joacine Katar Moreira?

Para os mais distraídos, antes de o ex-ministro da Cultura se ter pronunciado, em 2022, sobre o assunto, já a historiadora e antiga deputada à Assembleia da República tinha apresentado, em 2020, uma proposta que previa a restituição de património cultural aos países colonizados por Portugal.

Se não houvesse um filtro étnico-racial nas redacções - consciente ou inconsciente -, os historiadores Aurora Almada e Santos, Victor Barros e José Augusto Pereira também ocupariam o seu lugar de fala.

Da mesma forma, Ana Cristina Pereira apareceria como uma voz incontornável nesta discussão. Entre inúmeros créditos que lhe conferem autoridade na matéria, assinalo esta passagem da sua biografia: “Tem curado mostras de cinema (pós-)colonial e promovido a discussão pública em torno da Memória Cultural, do Racismo e das Reparações, sendo criadora e coordenadora do projecto Oficina de Reparações (mala voadora, Porto 2023)”.

Kitty, como é conhecida no movimento anti-racista em Portugal, é co-autora da Declaração do Porto, elaborada na sequência dessa Oficina.

Como explicar que a abordagem jornalística sobre reparações ignore o conteúdo desse documento, e as pessoas que o apresentaram? O que dizer também de quem investiga legados continuais, mas continua a ceder à tentação de um protagonismo professoral, sabendo que existem vozes negras com maior legitimidade para liderar esta e outras discussões?

Fixemo-nos no jornalismo. Diz o Executivo que, “a propósito da questão da reparação (…) pelo passado colonial do Estado português (…) Não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de acções específicas com esse propósito”.

Como explicar que esta mensagem não seja desmontada? O que é feito da iniciativa de inventariação da proveniência das obras de arte existentes nos museus? Por que não se discute o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação, documento que prevê várias medidas que podem ser enquadradas num programa de reparação?

Quando o Governo alega que o Estado tem mantido “gestos e programas de cooperação de reconhecimento da verdade histórica com isenção e imparcialidade”, como é que não se fala sobre a urgência de Portugal rever os manuais escolares, e não se questionam os bloqueios sucessivos, em Lisboa, à concretização do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas?

Da mesma forma, de cada vez que se assinala que não faz sentido discutir o passado com os olhos do presente, e que Portugal seguiu as práticas da época, porque é que não se apresentam as práticas de reparação que, nesta época, estão em curso à escala global? Atentemos, por exemplo, ao Slavery Memorial Year, que decorre nos Países Baixos.

Discutamos o caso francês, que vai além da devolução de obras de arte, com a Escravatura a estar reconhecida na Lei Taubira como crime contra a Humanidade. Olhemos também para o caso belga, em que, independentemente do que seria um bom resultado dos trabalhos, se avançou para a constituição de um Comité Parlamentar sobre o Passado Colonial. Os exemplos sucedem-se, e, com maior ou menor controvérsia, convidam-nos a reparar. Sem repetição dos apagamentos do costume.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

QOSHE - Racismo editorial, aliados ocasionais - Paula Cardoso
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Racismo editorial, aliados ocasionais

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01.05.2024

Quem é que vou ouvir? A cada reunião de planeamento editorial, aprovado o tema e definido o ângulo de abordagem, essa era a pergunta que se impunha para me lançar ao terreno. Dependendo do trabalho, muitas vezes partia em busca de casos reais para ilustrar os factos, e dava-lhes enquadramento a partir de um olhar especializado.

Significa que antes da decisão sobre quem ouvir, impunha-se reconhecer quem deveria ser ouvido, ou até mesmo quem não poderia deixar de ser ouvido.

A partir dessa experiência, que me acompanhou durante quase 20 anos de jornalismo, é-me evidente que uma proposta jornalística sobre reparações históricas - em que se aborda o legado colonial, e o dever de Portugal “pagar os custos” dos crimes cometidos nos territórios que ocupou -, tem de incluir a perspectiva de quem foi colonizado.

Não o fazer não é uma simples escolha editorial: é uma prática racista, institucionalmente enraizada para invisibilizar e silenciar pessoas negras, reduzindo-nos à condição de objectos de análise e nunca de sujeitos cognoscentes. Uma continuidade colonial, portanto.
Só assim se explica que o espaço de discussão sobre as reparações esteja monopolizado por pessoas brancas. Conseguem imaginar o que seria se os........

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