Três dias depois da demissão do primeiro-ministro, o Expresso noticiou (edição de 10/11) que tinha sido António Costa a pedir a Marcelo Rebelo de Sousa que a Procuradora-Geral da República fosse chamada a Belém para explicar até onde ia o processo Influencer. Na véspera, tinha reunido o Conselho de Estado. Uma semana depois, na Guiné, o Presidente da República quis confirmar de viva voz essa informação mas ao fazê-lo, indicando esclarecimentos já prestados pelo primeiro-ministro, deixou o país na dúvida: onde teria António prestado aqueles esclarecimentos? Não havendo referência pública ao assunto anterior à declaração presidencial, ou Marcelo estava a acusar Costa de ser a fonte do Expresso ou os esclarecimentos tinham sido dados no Conselho de Estado.

Foi perante estas circunstâncias que os jornalistas questionaram o líder do PS. Não havendo declarações públicas, continuaram os jogos de sombras. Na resposta, António Costa jurou a pés juntos que nunca revelou conversas com Marcelo Rebelo de Sousa e garantiu que nunca disse publicamente que tinha feito esse pedido. Não desmentiu Marcelo, a propósito de declarações públicas que não fez, simplesmente porque o Presidente nunca se referiu à forma como esses esclarecimentos foram tornados públicos. E andamos nisto! Com as mais altas figuras do Estado a tentar adivinhar as fontes, ou a denunciá-las porque se não é um é o outro, Costa subiu a parada e acusou Marcelo de escrever nos jornais com heterónimos, o mesmo é dizer que é a fonte de notícias com epicentro em Belém e que falam sobre ele.

Aqui para nós, que nos encontramos neste texto, sem hipocrisias, convém salientar que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa foram, são e continuarão a ser fontes directas de muitos jornalistas. Não vem daí mal ao mundo, nem se estranha que um e outro tenham mais confiança nuns jornalistas do que noutros. As relações entre políticos e jornalistas também se fazem de experiência de vida em conjunto e, sobretudo, de confiança mútua. O que se pode e deve estranhar é que uns se julguem donos da consciência dos outros, capazes de supor que a imprensa livre se faz com heterónimos.

Regressemos ao Expresso, desta vez para olhar para a notícia de que foi Lucília Gago a escrever o célebre último parágrafo. No dia em que saiu a edição com essa informação, o consultor de comunicação e amigo de António Costa, Luís Paixão Martins, publicou um link da notícia e questionou no Twitter: "antes ou após a audiência com o Presidente da República?", deixando no ar a possibilidade do tal parágrafo ter mão presidencial. Conhecendo Marcelo, não é de excluir a hipótese da revelação feita na Guiné ser uma resposta à insinuação de Paixão Martins.

No ponto em que está a relação entre os inquilinos dos dois palácios, as informações em "off" tenderão a desaparecer para dar lugar a um muito sonoro "diz-que-disse", numa espécie de passa-culpas pela crise política que vivemos, mas já era tempo de não responsabilizarem os mensageiros. O que nos espera vai precisar de jornalismo e de jornalistas de corpo inteiro, gente capaz de escrutinar o poder, de ouvir e discernir o que importa e não importa, de trabalhar em conjunto e cruzar fontes, de estar permanentemente à procura de viver o mais perto possível da verdade. A alternativa é deixar o caminho livre à mentira desabrida do populismo.

Jornalista

QOSHE - Heterónimos para que vos quero? - Paulo Baldaia
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Heterónimos para que vos quero?

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20.11.2023

Três dias depois da demissão do primeiro-ministro, o Expresso noticiou (edição de 10/11) que tinha sido António Costa a pedir a Marcelo Rebelo de Sousa que a Procuradora-Geral da República fosse chamada a Belém para explicar até onde ia o processo Influencer. Na véspera, tinha reunido o Conselho de Estado. Uma semana depois, na Guiné, o Presidente da República quis confirmar de viva voz essa informação mas ao fazê-lo, indicando esclarecimentos já prestados pelo primeiro-ministro, deixou o país na dúvida: onde teria António prestado aqueles esclarecimentos? Não havendo referência pública ao assunto anterior à declaração presidencial, ou Marcelo estava a acusar Costa de ser a fonte do Expresso ou os esclarecimentos tinham sido dados no Conselho de Estado.

Foi perante estas circunstâncias que os jornalistas questionaram o........

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