A conversa de Marcelo Rebelo de Sousa com o representante da Autoridade Palestiniana em Portugal comporta todo o cinismo com que se faz a discussão sobre culpas na guerra que, agora, domina as atenções do mundo. O Presidente não disse apenas a metade do que queria dizer, acrescentando pouco depois o que já sabia que tinha de ser dito. Marcelo disse o que pensava, não desvalorizando o sofrimento dos palestinianos, mas imputando-lhes uma culpa. O "alguns", com que quis corrigir o todos que estava no "vocês" da frase inicial, é um pronome demasiado indefinido para atribuir uma responsabilidade a quem tem nome próprio. Até porque o "vocês" a quem o Presidente se dirigia é a primeira vítima desse tal Hamas.

Há quem veja mais do que cumplicidade nos que nunca condenaram, ou o fizeram de forma pífia, a acção terrorista do Hamas e quem seja ainda mais exigente com os palestinianos, porque o terror foi semeado em nome deles. Lembram-se do vácuo referido por António Guterres? O contexto para que nos convocava deveria servir para condenar todas as atrocidades e não para desculpar as que aparecem como resposta à atrocidade anterior. A morte de inocentes só pode ter como resposta legítima o castigo dos culpados. É preciso nunca esquecer que a barbárie do Hamas, matando indiscriminadamente, olhos nos olhos, com indisfarçável maldade e supremo prazer, justifica a resposta do exército israelita mas não desculpa a matança despreocupada de inocentes com bombas lançadas de avião.

Há, ainda por cima, na conversa do Presidente da República com o representante da Autoridade Palestiniana em Lisboa, um tom de condescendência, quase arrogância, que fragiliza a posição de Marcelo perante a opinião pública do seu país. Não é segredo que os portugueses, como muitos outros povos pelo mundo fora, perante um conflito, têm normalmente uma empatia forte com a parte mais fraca. As imagens que chegam diariamente pela televisão mostram um dos exércitos mais poderosos do mundo a massacrar uma população que não tem para onde fugir. E a solidariedade que lhes é devida não esmorece nem um pouco a solidariedade com os reféns que o Hamas mantém em seu poder, nem com os familiares das vítimas de 7 de Outubro.

Enquanto se radicalizam posições no Médio Oriente, cresce em todo o mundo uma cultura de ódio contra uns e outros. O anti-semitismo e a islamofobia fazem caminho numa Europa que se prepara para eleger o seu Parlamento dentro de sete meses. Em Portugal, mas não só, convém que os políticos com maiores responsabilidades não comecem a dar tiros nos pés, fazendo intervenções não ponderadas, iniciando conversas que não tencionam (ou não sabem como) acabar, usando frases ambíguas, polarizando ainda mais um debate político onde os populistas estão em vantagem. A Marcelo deveria bastar o elogio que recebeu do Chega nesta matéria para saber que errou.

Quando se matam judeus porque eles mataram muçulmanos e se matam muçulmanos porque eles mataram judeus, quando se mata porque alguém matou, importa saber quem começou? Não me parece! A Humanidade leva séculos a ver que atrás da morte vem a morte dos que acham que é matando que se acaba com as mortes.


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Quando se mata porque alguém matou, importa saber quem começou?

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06.11.2023

A conversa de Marcelo Rebelo de Sousa com o representante da Autoridade Palestiniana em Portugal comporta todo o cinismo com que se faz a discussão sobre culpas na guerra que, agora, domina as atenções do mundo. O Presidente não disse apenas a metade do que queria dizer, acrescentando pouco depois o que já sabia que tinha de ser dito. Marcelo disse o que pensava, não desvalorizando o sofrimento dos palestinianos, mas imputando-lhes uma culpa. O "alguns", com que quis corrigir o todos que estava no "vocês" da frase inicial, é um pronome demasiado indefinido para atribuir uma responsabilidade a quem tem nome próprio. Até porque o "vocês" a quem o Presidente se dirigia é a primeira vítima desse tal Hamas.

Há quem veja mais do que cumplicidade nos que nunca condenaram, ou o fizeram de forma........

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